quarta-feira, 22 de maio de 2019

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «Dois dominicanos e dois franciscanos tinham-se posto a discutir sobre os pecados do Rei, à luz das informações chegadas, a uns e a outros, por vias populares»

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«(…) Não é esse o nosso caso, respondeu o padre Villaescusa. O Rei não foi às put… porque a Rainha o tenha repelido. Investiguei tudo: o Rei há várias semanas que não acorre aos aposentos da Rainha. Não houve, pois, rejeição que explique, sem a justificar, uma infidelidade. Foi neste momento que o inquisidor-mor interrompeu a discussão com um bocejo: tão grande que quase se lhe desencaixa a mandíbula; tão sonoro que cobriu a resposta do padre Almeida. Reverências, disse, não vos parece que o primeiro ponto da discussão está suficientemente debatido? Consta-nos que o Rei foi às put…, mas o padre Almeida, com o seu enorme senso comum, semeou a dúvida de que os Reis nossos senhores estejam efectivamente casados. Eu disse a dúvida, não a certeza. Nomear-se-á uma comissão que estude o caso e emita o seu parecer. Fica de pé um pecado, no ar outro, mas aquele é da incumbência do confessor, não deste alto Tribunal. Observo que Vossas Mercês estão encaloradas. Eu também. Proponho um descanso, enquanto nos refrescamos com umas bebidas frias que mandei preparar. Suspende-se, pois, a sessão por meia hora. Os presentes que tinham estado sentados puseram-se de pé, com rebuliço de hábitos de diversos cortes e cores. Os contendores daquela batalha dialéctica esperaram que o inquisidor-mor saísse, depois de ter recolhido (o inquisidor-mor) as longas caudas da sua vestimenta. À saída respeitaram uma rigorosa ordem de hierarquias, de modo que, sem se olharem, o padre Villaescusa e o de Almeida saíram a par. No claustro esperavam-nos os refrescos.

Distribuíram-se por afinidades teológicas e pela preferência por determinadas bebidas: uns pela água de cevada, outros pela salsaparrilha, outros ainda pela popular orchata, salvo o inquisidor-mor, que preferiu um copo de frio clarete bebido na sua taça etrusca, uma jóia que trouxera de Itália, adquirida após misteriosos e arriscados tratos em que tinham participado um cardeal da Santa Cúria e uma prostituta de clara linhagem, muito afecta aos interesses da Santa Sé, da qual tinha recebido um título de princesa que arrastava por leitos ilustres, ou pelo menos ricos: Sua Excelência acariciava o requintado cristal enquanto saboreava o vinho, e tanto os seus dedos como a sua língua estremeciam de recordações gloriosas. Olhava, da sua altura, para os seus colegas, e, salvo o padre Enríquez, que era irmão de um grande de Espanha, metido a frade devido a um fracasso amoroso, e o padre Almeida, evidentemente distinguido com a sua preferência, considerava os restantes como labregos empanturrados de textos em latim, malcheirosos alguns, toscos de maneiras os demais, vindos da gleba, fugitivos do arado. Algum deles não tardaria a ser bispo. Meu Deus, oxalá que o fosse de terras longínquas, onde restavam tantos índios por converter, ainda que fosse à chicotada! Tudo menos recebê-los em audiência mês após mês, àqueles frades, para lhe exporem questões de heresias rurais, listas de suspeitos judaizantes e mouriscos, ou de gentes ignaras de estranhas práticas sexuais. Quem não será judeu neste país? E recordou a sua trisavó, conversa de Saragoça, que em tempos do rei Fernando tinha escorado com os seus dobrões uma antiquíssima casa de godos que se desmoronava. Tinha tirado a luva da mão esquerda, luva roxa de arcebispo in partibus, para apreciar melhor a frescura do clarete e o delicado talhe do cristal.
Dois dominicanos e dois franciscanos tinham-se posto a discutir sobre os pecados do Rei, à luz das informações chegadas, a uns e a outros, por vias populares. As possibilidades eram três, segundo as ditas informações: quatro cópulas e um fracasso à quinta, as quatro cópulas sem fracasso, e o fracasso como única realidade pecaminosa. O que se discutia não deixava de ser complicado: se as quatro cópulas deviam considerar-se como um único delito, ou como quatro; se o fracasso, isolado ou em conjunto unitário, deveria considerar-se também como pecado mortal em matéria de intenção ou se, dadas certas circunstâncias bastante incertas e difíceis de deslindar, tais como se a intenção tinha sido provocada pela cúmplice ou se tinha obedecido a um impulso real podia entender-se como meramente venial; finalmente, se a cúmplice, sem dúvida alguma sabedora de com quem partilhava o leito e a quem oferecia a sua colaboração para o pecado, devia ou não ser considerada ré de um delito contra o Estado, e não só como habitual pecadora contra Deus, e, portanto, transferida para a jurisdição ordinária para que a julgassem segundo as leis civis. Armavam tal confusão, em latim e em romance, que a maior parte dos presentes tinham acabado por formar uma roda e os escutavam com mostras de aprovação ou de repulsa, salvo o padre Rivadesella, que se ria deles francamente. O padre Almeida não figurava entre os vociferantes: tinha-se encostado a uma pilastra e observava como a luz dourava os ramos das árvores, e como mais abaixo ia morrendo nas flores. O inquisidor-mor aproximou-se dele, sorridente». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT