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e jdact
«(…) Matteo irritava-se
quando pensava nos pais. Quem seriam? O que lhes acontecera? Por onde andariam?
Porque o abandonaram? As perguntas naturais de um jovem adulto à procura da sua
história. Sentia que eram um insulto à memória de Úrsula, que fizera por ele
mais do que dezasseis pais
funcionais, estáveis e afectuosos, mas não o conseguia evitar.
Alguém o trouxera ao mundo e o largara. Ironicamente, Matteo ganhava a vida a
contar a história dos outros, embelezada pela prosa e pelos bardos, pelos
poetas, pelos séculos e pelos milénios. Para ele o mundo estava dividido entre os
patifes e os simplórios, e os primeiros eram muito mais numerosos que os
segundos. Como a mãe, Úrsula, só houvera uma. As suas visitas guiadas à cidade
de Verona tornaram-se famosas. Das
nove da manhã até às seis da tarde, o autocarro turístico de Matteo andava
apinhado maioritariamente de japoneses, alemães, ingleses, dinamarqueses e
alguns compatriotas. Os grupos eram, na sua maioria, femininos, o que não era
surpreendente. Insólito era ver o mesmo homem, solitário, repetir a visita pelo
terceiro dia consecutivo. Quando isso acontecia só podia significar uma coisa…
Era gay.
O dia começava com
uma entrada a matar. Guias, panfletos, mapas, tudo era recolhido e guardado.
Tinham apenas duas obrigações
naquela viagem, e apenas duas: a de abrir bem os olhos e a de se concentrarem
na voz dele. O resto era emoção pura, era deixarem levar-se pela narrativa. Começavam
por Castelvecchio, o velho castelo gótico que defendia a cidade na Idade Média,
com as suas sete torres e o fosso que outrora estava cheio com águas do Adige,
o rio que banhava a cidade, mas que agora estava seco. Para o voltar a imaginar
cheio era necessário ouvir a voz teatral de Matteo que, por vezes, se colocava
atrás de alguma turista mais absorta, numa das rampas ou na ponte que ligava ao
castelo, e lhe propunha o exercício de recuar alguns séculos. Depois visitavam
a Arena, um anfiteatro romano do século I, que apesar de se estar a desfazer
ainda funcionava. Não havia muitos exemplares daqueles que tivessem resistido ao
tempo e aos homens.
Matteo não se limitava a contar
as histórias nem as curiosidades que deixavam os turistas deslumbrados e
aprisionados à sua voz. Dava sugestões para quando ele não estivesse ali, para quando
deambulassem pela cidade sozinhos ou com a sua cara-metade. Dizia-lhes que
atravessassem a ponte Pietra e subissem ao castelo de San Pietro. Dali,
gratuitamente, podiam assistir a um pôr-do-sol mágico, mesmo em dias de frio
como aquele. Deviam também subir a torre Lamberti, a maior da cidade, para uma vista
panorâmica invejável. Ainda de manhã, levava-os ao Duomo, claro, depois a
Sant’Anastacia e, já que ali estavam, a uma pequena capela, por vezes esquecida,
que se chamava San Giorgetta. Depois da história e da religião vinha o amor, da
parte da tarde. Primeiro, nos arredores da cidade, a Basílica de San Zeno e a
sua fachada romanesca em travertino. Centro de peregrinações durante séculos,
era o local onde o santo patrono da cidade, Zeno, repousava para a eternidade.
Mas não era essa a razão por que os levava lá. Ninguém queria saber desse San
Zeno. Baixavam à cripta, onde estava o sarcófago do santo, o rosto coberto com
uma máscara de prata. Tinha uma nave e oito corredores com quarenta e nove
colunas. A atmosfera respirava vida e história e mais qualquer coisa,
inidentificável. Uma sensação de mistério pairava no ar. Havia bancos de
madeira em dois corredores exteriores à pequena nave central onde Matteo pedia
que se sentassem. A seguir, caminhava para o altar, lentamente, alongando o
suspense, e colocava-se em frente a ele, de costas para o sarcófago.
Foi aqui, limitava-se a dizer com
um timbre misterioso como se estivesse a contar um segredo. Os turistas olhavam
para ele pasmados. Foi aqui
o quê? O
turista repetente já sabia o que tinha acontecido naquele espaço mas não ousava
perturbar o silêncio sagrado dos mistérios e estragar o ambiente. Era engraçado
preservar aquela sensação de desconhecimento por mais alguns segundos. Matteo
aproximava-se da primeira fila de bancos e olhava para o tecto, a pouco mais de
meio metro. Foi aqui. Exactamente neste local onde me encontro. E deixava o
silêncio espraiar-se mais uns segundos inofensivos. Depois pedia a um casal da
fila da frente para se levantar e se colocar à frente dele…, como dois noivos.
Ele do lado esquerdo, ela do direito. Foi assim, estão a ver? Há sete séculos,
neste preciso local, nestas posições. Foi aqui que casaram… Romeu e Julieta». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013,
ISBN 978-972-004-411-2.
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