Cortesia
de wikipedia e jdact
Dia
de Finados
«Naquele
ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma família numerosa
e abastada, ao cemitério da terra natal. Ainda havia muitos descendentes no
estrangeiro, mas a casa em que se reuniam objectos e memórias mais presentes
estava praticamente desabitada. Com o mau humor que caracteriza os jovens ao
ter que proteger publicamente os velhos, Martinho deu a mão à avó para ela não
tropeçar nos seixos levantados da calçada. Um mar de automóveis cobria a
estrada. Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo diante dos portões
e entradas que prometiam não ser frequentadas na manhã austera de Finados, as
carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitério, que Martinho conhecera ainda
meio rural, com alguns jazigos de capela elevando-se sobre as campas de terra,
alargara-se, apinhado de sepulturas recentes; os mármores e o granito polido
davam ao campo-santo um aspecto de cozinhas bem arrumadas, alegradas por braçadas
de flores. Entre a massa de crisântemos, despontavam orquídeas claras. Era um
luxo, uma glória prestada aos mortos. E que mortos! Martinho admirava os rostos
patéticos em caixilhos dourados e as letras também douradas nas lápides novas
em folha.
Parece que morreram todos ao
mesmo tempo, disse, ainda a segurar a mão da avó, fria e de dedos esqueléticos
e bonitos. Tem compostura e sobretudo não me faças rir. Eu? A avó é que se ri
de tudo sem compaixão. Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo está estragado!
Mas tem dignidade assim como está. O fio da sua camisola pegou-se à balaustrada
do jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado por troncos fingidos de cimento,
o que na época devia representar o máximo, se não de bom gosto, pelo menos de
ousadia. Começava a época do betão, e o velho engenheiro, de quem Martinho mal
sabia o nome, deixava ali a sua marca desafiadora. Era avô do avô, o que para
Martinho vinha a dar um parentesco distante e labiríntico. Pelos retratos,
via-se que era um homem elegante, no seu fato de pied-de-poule cinzento
e a barba que provavelmente lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho
herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avançado e estreito.
Um nariz de judeu, e está tudo dito. Não deixava por isso de ser bonito, o
jovem Martinho. Era doce como o açúcar quando queria e paciente como Cristo. Se
bem que, também como Cristo, tivesse súbitas cóleras que só a avó compreendia.
Isto
vai passar. É um homem e os homens são imprevisíveis, dizia ela à mãe de
Martinho, a sua filha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase verdes, e que
não tinham perdido ainda o brilho. A avó passara o cabo dos cinquenta anos com
alguma dificuldade, e um fibroma que se desenvolvera nessa idade diminuía-a a
ponto de a pôr nervosa e pronta a desfazer-se em lágrimas. Consultou em Paris
um médico velho e compassivo; passou-lhe uma receita que ela aviou numa
farmácia da Praça da Ópera, indo depois comer ostras entre desenganada e
ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho Dias Nabasco crescera entre duas
mulheres que o amavam. Era um amor sujeito a mudanças, como tudo na vida. Nesse
ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as férias em Biarritz e não pôde ir
florir a campa dos mortos, cada vez mais distante na província que fora o berço
dos Nabasco e que se urbanizara até ficar irreconhecível. O que ligava Paula a
Biarritz era uma velha história de família; o exílio dos Nabasco nos tempos da
República e também a fortuna de que dispunham para se fazerem respeitar sem se
olhar ao nome ou à origem. Duma irmandade de muitos irmãos, que mais parecia
convento do que lar de proporções normais, os Nabasco tinham-se corrompido a
ter poucos filhos, depois da guerra de 14, quando a vida se tornou bizarra e
divertida. Ter só um filho ou um casalinho tornou-se um capricho da burguesia
bem nascida. O tempo do avô Nabasco, o do jazigo em betão armado, fora o último
da procriação natural sem o recurso ao preservativo e ao coito interrompido.
Teve nove filhos, dos quais três eram deficientes mentais, de instintos
matreiros e pirómanos, e assim por diante». In Agustina Bessa Luís, A Ronda
da Noite, Guimarães Editores, 2006, ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN
978-989-641-811-3.
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