sábado, 18 de maio de 2019

A Ronda da Noite. Agustina Bessa Luís. «O mesmo que Martinho herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avançado e estreito. Um nariz de judeu, e está tudo dito»

Cortesia de wikipedia e jdact

Dia de Finados
«Naquele ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma família numerosa e abastada, ao cemitério da terra natal. Ainda havia muitos descendentes no estrangeiro, mas a casa em que se reuniam objectos e memórias mais presentes estava praticamente desabitada. Com o mau humor que caracteriza os jovens ao ter que proteger publicamente os velhos, Martinho deu a mão à avó para ela não tropeçar nos seixos levantados da calçada. Um mar de automóveis cobria a estrada. Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo diante dos portões e entradas que prometiam não ser frequentadas na manhã austera de Finados, as carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitério, que Martinho conhecera ainda meio rural, com alguns jazigos de capela elevando-se sobre as campas de terra, alargara-se, apinhado de sepulturas recentes; os mármores e o granito polido davam ao campo-santo um aspecto de cozinhas bem arrumadas, alegradas por braçadas de flores. Entre a massa de crisântemos, despontavam orquídeas claras. Era um luxo, uma glória prestada aos mortos. E que mortos! Martinho admirava os rostos patéticos em caixilhos dourados e as letras também douradas nas lápides novas em folha.
Parece que morreram todos ao mesmo tempo, disse, ainda a segurar a mão da avó, fria e de dedos esqueléticos e bonitos. Tem compostura e sobretudo não me faças rir. Eu? A avó é que se ri de tudo sem compaixão. Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo está estragado! Mas tem dignidade assim como está. O fio da sua camisola pegou-se à balaustrada do jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado por troncos fingidos de cimento, o que na época devia representar o máximo, se não de bom gosto, pelo menos de ousadia. Começava a época do betão, e o velho engenheiro, de quem Martinho mal sabia o nome, deixava ali a sua marca desafiadora. Era avô do avô, o que para Martinho vinha a dar um parentesco distante e labiríntico. Pelos retratos, via-se que era um homem elegante, no seu fato de pied-de-poule cinzento e a barba que provavelmente lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avançado e estreito. Um nariz de judeu, e está tudo dito. Não deixava por isso de ser bonito, o jovem Martinho. Era doce como o açúcar quando queria e paciente como Cristo. Se bem que, também como Cristo, tivesse súbitas cóleras que só a avó compreendia.
Isto vai passar. É um homem e os homens são imprevisíveis, dizia ela à mãe de Martinho, a sua filha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase verdes, e que não tinham perdido ainda o brilho. A avó passara o cabo dos cinquenta anos com alguma dificuldade, e um fibroma que se desenvolvera nessa idade diminuía-a a ponto de a pôr nervosa e pronta a desfazer-se em lágrimas. Consultou em Paris um médico velho e compassivo; passou-lhe uma receita que ela aviou numa farmácia da Praça da Ópera, indo depois comer ostras entre desenganada e ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho Dias Nabasco crescera entre duas mulheres que o amavam. Era um amor sujeito a mudanças, como tudo na vida. Nesse ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as férias em Biarritz e não pôde ir florir a campa dos mortos, cada vez mais distante na província que fora o berço dos Nabasco e que se urbanizara até ficar irreconhecível. O que ligava Paula a Biarritz era uma velha história de família; o exílio dos Nabasco nos tempos da República e também a fortuna de que dispunham para se fazerem respeitar sem se olhar ao nome ou à origem. Duma irmandade de muitos irmãos, que mais parecia convento do que lar de proporções normais, os Nabasco tinham-se corrompido a ter poucos filhos, depois da guerra de 14, quando a vida se tornou bizarra e divertida. Ter só um filho ou um casalinho tornou-se um capricho da burguesia bem nascida. O tempo do avô Nabasco, o do jazigo em betão armado, fora o último da procriação natural sem o recurso ao preservativo e ao coito interrompido. Teve nove filhos, dos quais três eram deficientes mentais, de instintos matreiros e pirómanos, e assim por diante». In Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite, Guimarães Editores, 2006, ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN 978-989-641-811-3.

Cortesia de GuimarãesE/Rd’Água/JDACT