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«(…) Tadeu,
meu querido Tadeu, meu amiguinho, tenho sido muito má, não tenho querido contar-te
nada com medo de que lhe dissesses a ele alguma coisa. Eu queria ser a primeira
a dizer-lhe, queria gozar do seu sorriso, do seu olhar de anjo, de mártir
beatificado, do seu olhar que me enlouqueceu para sempre... Agora digo-te, já
não tenho motivo nenhum para to esconder. Vou casar-me, vou ser dele, só
dele... Levar-te-ei connosco... Olha que foi ele que mo pediu… Vê como ele é
bom. Eu a falar a verdade estava tão doida que nem me lembrei de semelhante
coisa; mas ele falou logo em ti, foi a sua primeira vontade! Adoro-te visto que
ele é teu amigo. Hás-de aborrecer-me ás vezes, meu pobre Tadeu, porque nunca
entendes a tempo quando deves ir-te embora, mas eu hei de educar-te. Verás!
Viveremos todos três. Nunca mais te hei-de tratar mal! Nunca mais me hei-de rir
da tua casaca. E, a propósito, tu ainda a tens, aquela malfadada casaca? Não me
faças rir no dia do meu casamento, pelo amor de Deus manda fazer uma nova para
esse dia. Não tenhas medo de gastar. Eu tenho muito. Sou rica, muito rica,
somos todos três muito ricos.
E doida,
anelante, no delírio da criança que venceu a sua primeira teima, na dilatação
ampla de uma alma que conquistou o seu desejo supremo, Margarida expandia
nestas palavras difusas incoerentes, sem nexo, toda a felicidade que era hoje
dela e que julgava eterna. Tadeu escutava com o olhar morto e vidrado de um
sonâmbulo. Depois emudecido por uma dor aguda que lhe rasgava as carnes de todo
o seu corpo como um punhal de muitas lâminas, saiu do quarto cambaleando como
um ébrio. No dia do casamento de Henrique houve dois seres que na humilde
tristeza de uma pobre casa, choravam unidos todas as lagrimas da sua alma. A um
desses seres pungia-o uma angústia dilacerante demais para que a palavra humana
a pudesse traduzir. A outro sobressaltava-o um pressentimento horrível, como
que um dobrar de finados que lhe ecoava lá dentro, e ao qual não podia fechar
os ouvidos. Esses dois seres esquecidos, voluntariamente afastados das pompas
principescas daquele dia, das festas daquela solenidade esplendida eram Tadeu e
a irmã de Henrique.
De
feito há já cinco anos que viviam juntos numa casa espaçosa e lindíssima de
Buenos-Aires. Henrique pedira com tão meigas e sentidas palavras a Tadeu para
que ele os não deixasse, que depois da viagem de rigor feita pelos noivos à
Suíça e à Itália o bom cão fiel foi viver junto deles. As investigações da
ciência, o estudo paciente dos homens e das coisas, altas aspirações inspiradas
pelo marquês a uma gloriosa carreira política, absorviam Henrique, enquanto que
Tadeu mais amadurecido agora pela experiencia da vida, administrava a casa,
tomava contas aos feitores e criados, punha em ordem os pagamentos, recebia os
rendimentos, pagava aos fornecedores, era por assim dizer o mordomo-mór da
opulenta fortuna da sua companheira de infância. Margarida continuava a ser o
enlevo e o mimo de quantos viviam junto dela. De uma organização delicada,
nervosa e vibrátil, com um aspecto infantil, que infundia uma vaga e doce ideia
de protecção; boa, desta bondade superficial e egoísta, que consiste em não
gostar de ver ninguém triste ao pé de si, todos os seus caprichos se convertiam
noutras tantas graças, todas as suas exigências se impunham com a tirania
adorável de uma súplica! O marido tinha por Margarida aquela paixão deletéria e
quase covarde, que ela lhe inspirara logo no primeiro dia. Não sabia resistir
senão a muito custo, a um olhar daqueles olhos húmidos e radiantes, a um
sorriso daqueles lábios vermelhos, a um gesto daquelas mãos finas, esguias,
pálidas, da suave palidez dos lírios». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos
Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências
de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História
Verdadeira, Wikipedia.
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