Cortesia
de wikipedia e jdact
Dia
de Finados
«(…) Mas Maria Rosa Nabasco, a avó
de Martinho, limitou-se a dar à luz um rapaz e uma rapariga a quem pôs o nome
de Paula, nome que ainda não existia na família e que ela, a avó, achava
indispensável numa genealogia católica. S. Paulo era, entre outros, o seu amigo
preferido por razões que ela, dificilmente abordava mas que não eram as mais
canónicas. Até aos nove anos, Martinho Nabasco esteve convencido que o mundo
era partilhado por pessoas inteligentes, inventivas e criadoras. Quando se
apercebeu que havia muita gente parada, como a avó Maria Rosa dizia, isso
perturbou-o. Numa família em que até os deficientes mentais eram bem servidos
de massa cinzenta que dava origem a anedotas, ditos de espírito e calembures
geniais, o facto de se perceber que aquilo não era tudo e que podia haver
verdadeiras hordas de brutos e de melancólicos activos e passivos, teve grande
efeito em Martinho. Até os Cunhas, que eram por tradição criados dos Nabasco, constituíam
uma elite de gente apurada de gostos e de entendimento. Os Cunhas eram sete irmãos
e uma irmã chamada Ana. Muito feia, ao contrário dos outros, que eram elegantes
e bonitos rapazes, ela detinha o espírito mais elevado e a graça
correspondente. Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes para lhe
alegrar o coração, que era dado a súbitas apreensões, como o rei David.
Acho
que somos parentes. Também eu gosto de música como remédio e não como prazer, dizia.
Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente
graciosas e cozinhavam muito bem. Durante duas gerações foram presentes na casa
dos Nabasco e contribuíram para a felicidade dos dias que nem sempre eram de
aproveitar. Atrás de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma herdeira dos Cunhas e
que carregava as flores do dia de finados. Simples crisântemos, novelo, brancos
e redondos como nuvens brancas e redondas. A Elisa era uma mulher robusta que
vestia um uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer um uniforme, com
colarinho e um gilet cinzento a completar. O efeito era sóbrio mas
parecia uma extravagância numa época em que os costumes eram ditados pelos espaços
de pronto-a-vestir. Ela orgulhava-se de não se converter aos jeans, se bem que
ao preferir as saias de pregas estava a valorizar o porte de matrona. Ainda
havemos de ver o dia em que os homens usem saias. São mais cómodas e mais arejadas,
dizia. Estabeleciam-se grandes discussões em volta de questões pequenas, e aquilo
despertava o espírito e tornava-o incandescente. Na hora perto do jantar,
quando se entrava na cozinha para destapar as panelas e provar os molhos,
acontecia aquela variada conversa sobre palavras, hábitos e o que os explicava.
Martinho já não conhecera a casa da Rua de Belomonte que tinha a cozinha e a
sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mítica.
Às seis horas da tarde abria-se a porta do quintal aos cães e eles subiam pelas
escadas como um esquadrão da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras,
abanando as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram cães de caça; e
embora não houvesse mais caçadores em casa, alimentava-se essa tradição com os setters
bonitos, cor de fogo cujo pêlo luzia ao lume do fogão de lenha. Porque até
muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os fogões de sala.
Ouvia-se o crepitar das achas secas como um ruído de bom augúrio na manhã
enevoada. O rio tinha ainda humores de estação, crescia no Inverno e acumulava
nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na
corrente, rápido na flor das ondas já invadidas pelo mar aberto. Tudo isso
Martinho não tinha conhecido. Nem a mãe dele, Paula, que se distinguia por ser
dessas mulheres enclausuradas ainda, e que aprendem equitação para o caso de ir
viver em grande estilo com um senhor das lezírias ou com um lorde inglês. Imaginações
que se desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, já em declínio mas ainda
consultoria de casamentos». In Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite,
Guimarães Editores, 2006, ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN
978-989-641-811-3.
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