sexta-feira, 17 de maio de 2019

A Sibila. Agustina Bessa Luís. «Olha que a minha prima do Soito casou aos onze anos. Aos treze teve dois filhos dum ventre, e criou-os, que ninguém lá foi criar-lhos, ripostava Maria»

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«(…) Com cinco anos, enquanto Estina, calçada com as suas meias de lã parda e branca, corria para a mestra, Quina, ficava sentada no degrau que comunicava a nova cozinha com os outros aposentos, e que era um pequeno caixote oscilante, posto ali para facilitar a subida das crianças. Ela segurava nos braços o mais novo dos irmãos, e cantava com a vozinha trôpega, quadras irreverentes a respeito da Patuleia, em cujas trincheiras combatera o marido de Narcisa Soqueira, um homem bronco até ao inverosímil, herói de muitas histórias galhofeiras. Dos caibros, cujo pinho claro se defumava já, pendiam tranças de cebolas, e a dobadoira, com a meada enfiada nos braços, estava sobre uma prateleira junto à fila de pepinos maduros que se guardavam para semente. No boqueirão da chaminé, que parecia a forma duma pirâmide, brilhavam oleosas fuligens. Chovia. A água repicava de encontro ao zinco que forrava até meio a porta que ficaria depois cheia de entalhaduras a canivete, marca e presságio da futura estatura de todas as crianças da família que ali se mediam aos dois anos, e cuja altura dobrada seria, diziam, a definitiva. O armário embutido ao canto da banca, em triângulo, supurava ainda resina dos seus nós. Aquela era a cozinha nova, a que substituía a dependência térrea onde se cozia o pão, e que ficava no seguimento das cortes do gado, no quinteiro, terreiro muito afofado de matos onde a chuva e a urina do gado empoçavam, e onde a geada fazia efeitos de corais brancos nos gravetos de urze. Por um fenómeno não muito raro no coração das mais extremosas mães, Joaquina Augusta encontrou um terreno de afectos quase totalmente dedicado à primeira filha, Estina. Talvez porque ao nascimento desta se ligassem mais vivos pormenores sentimentais, ou porque a criança ao crescer se revelasse detentora de perfeições e afinidades que seriam réplica da própria mãe, Maria distinguiu-a desde sempre, fosse no desvelo da educação ou no poupar-lhe as canseiras mais pesadas do lar. Entretanto, Quina, desde muito nova, lidava sob o estímulo da mãe, que a exigia activa e responsável, mais do que seria de desejar em menina tão miúda. Mas ela vergava-se àquela seca disciplina, adquirindo uma consciência de adulto, um orgulho de capacidade que seria o remorso de Maria, se esta tivesse ócios disponíveis para tais subtilezas. Deixa-a brincar também, dizia Francisco, tocado pelo azafamado jeito da cachopinha, que corria da adega à horta, acamava a roupa no cortiço da barrela, vedava com bosta húmida à porta do forno, carregava o linho que demolhava nas presas ou corava no limiar do pomar.
Olha que a minha prima do Soito casou aos onze anos. Aos treze teve dois filhos dum ventre, e criou-os, que ninguém lá foi criar-lhos, ripostava Maria. Este argumento da parenta, cujo casamento fora tratado por inculcas entre duas casas fartas, era fatídico. Quina deteve-o como exemplo desde o alvorecer da razão e, quando velha, ouvia ainda a mãe falar daquela heroína prima do Soito, quando alguém aludia à extrema juventude duma noiva ou duma esposa, para desculpar-lhe as leviandades e os feitos ingénuos. Quina chegara a ganhar raiva à pobre criaturinha, agora feita uma mulher gemebunda, a quem os muitos e sucessivos partos tinham abalado o coração. Apenas o pai ela tinha por aliado, somente ele a socorria com o disfarçado conforto dum sorriso, uma palavra, quando Quina passava, os olhos pregados no chão, sob o acicate da mãe sempre implicante, sempre manejando o fueiro e a chinela com uma expressiva agilidade. Entre Quina e o pai foi aos poucos surgindo uma espécie de aliança secreta, uma cumplicidade quase irónica que atingia Maria, caçoando da sua brusquidão, uma vez que não seria possível pôr-lhe cobro. E, naquele lar em que o chefe aparecia apenas para ser servido, para aceitar a escolha do melhor bocado e a servidão feliz de todos os que levavam afinal o fardo das monótonas canseiras, Quina recolhia com gratidão a deferência que o pai, tão admirável, tão estranho, tão difícil, lhe insinuava. O amor por ele tornou-se devoção». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954, Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.

Cortesia de Rd’Água/JDACT