jdact
«(…) O Cão Negro acenou com a cabeça,
confirmando a sua autoridade e acrescentou: E tu tiens de limpiar mi mier… Eu
bufara e depois respondera: assim será. O Cão Negro ficou a observar-me uns
segundos, e depois deu uma gargalhada, agradado com o resultado da conversa. Os
correligionários riram-se também. Só Muhammed não se riu, e quando os espanhóis
se afastaram avisou-me: Muhammed não ir limpar mer…! Dei-lhe um carolo no alto
da cabeçorra e disse: não te preocupes. Vais ver a mer… que vou limpar... Uns
dias depois, as celas do Cão Negro e de alguns dos castelhanos apareceram
borrifadas de fezes e de urina. Possessos com tal acto de rebeldia e desafio,
prometeram vingança. O Cão Negro avisou-me: cabrón, és um homem muerto! Sem
mostrar medo, respondi-lhe: tens de comer melhor, a tua mer… cheira mesmo mal. Foi
ousadia e inconsciência a mais. Quando, na manhã de sábado, Dia de
Todos-os-Santos, levei aquele murro, senti a vida por um fio. Dois espanhóis
levantaram-me do chão e arrastaram-me para uma antecâmara onde não podiam ser
vistos pelos guardas. Atiraram-me de novo para o chão e pontapearam-me as
costelas. Depois, pararam e ficaram em silêncio e o seu líder apareceu, com uma
barra de ferro nas mãos. Contra aquele colosso, se ele estivesse desarmado
ainda podia ter hipóteses, assim era difícil.
O Cão Negro sorriu, com raiva,
mostrando os dentes castanhos. Vou-te enfiar isto in el culo, cabrón! Recordei-me
de uma cena, nas masmorras árabes. Tinham-me magoado e humilhado, mas nunca
baixara os braços e sobrevivera. Levantei-me e dei dois passos atrás,
procurando ganhar tempo. Olhei rapidamente à minha volta. Era uma sala deserta,
não via nada que me ajudasse a vencer aquele combate. E Muhammed também não
iria aparecer, pois os dois espanhóis bloqueavam a entrada. Vais chiar até
morrer, cabrón, rugiu o Cão Negro. O mastodonte avançou, a correr, com a barra
levantada, mas esquivei-me com rapidez e dei-lhe um murro no estômago. Grunhiu de
dor e investiu de novo. Desta vez não consegui afastar o corpo, e a barra
acertou-me na coxa, magoando-me. O Cão Negro sentiu a sua superioridade e
voltou a atacar. Consegui bater-lhe na cara, mas perdi o equilíbrio ao
desviar-me, escorreguei e caí. O bruto golpeou-me num braço e no ombro, e
depois saltou para cima de mim. Rolámos os dois pelo chão, aos murros.
Procurava o ferro com os olhos quando uma violenta pancada
no nariz me deixou atordoado. O Cão Negro levantou-se, a barra na mão, e
gritou: reza, cabrón. A princípio, não percebi o que se passava. De súbito,
havia medo nos olhos do Cão Negro. O chão tremia, as paredes abanavam e um
rouco ruído nascia naquele espaço. Junto à porta, os dois espanhóis
desapareceram. O barulho tornou-se ensurdecedor, caíram bocados do tecto e o
local encheu-se de pó. O chão, onde eu permanecia caído, saltou, e num dos
cantos da divisão desabou parte do tecto. Esquecendo a luta, o Cão Negro
escapou para o pátio, enquanto mais pedras caíam, e eu me dobrava, protegendo a
cabeça com as mãos. Houve um breve interregno de calmaria e tentei levantar-me,
afastando as pedras de cima do corpo. A poeira escurecera a sala e não via a
saída. No tecto, abrira-se um buraco enorme, e um prisioneiro estava pendurado,
de cabeça para baixo, preso pelas pernas nas traves que separavam os dois
andares. Ouvi-o gemer: ajuda-me, ajuda-me... Em agonia, não iria durar muito
tempo naquela situação. Olhei à minha volta, mas as madeiras no chão, a maior
parte delas partidas, eram demasiado curtas para chegarem ao homem, que só
poderia ser salvo a partir do andar de cima. Vou procurar ajuda, gritei. Nesse
momento, o chão recomeçou a tremer. À minha volta tudo abanou, produzindo o
estrondo mais assustador e tenebroso que ouvira em dias da minha vida. Sobre
mim, o edifício da prisão caía, como se fosse um baralho de cartas, cuspindo
pedras e madeiras e poeiras, e deixando-me encolhido de medo». In
Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos
vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro,
2010, ISBN 978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT