sábado, 1 de junho de 2019

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Saltitou sete ou oito metros à minha frente, e depois ouviu-se um tiro e o francês caiu morto. Dobrei os joelhos e deitei-me sobre a terra irregular»

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«(…) Uns minutos depois, regressou a tranquilidade à terra e acalmei. Tinha tido sorte: estava vivo, mas também soterrado por detritos, num local que me parecia irreal. Aquela antecâmara, antes escura e fechada, iluminava-se agora com feixes de luz verticais, que cortavam a poeira de forma irregular, produzindo um efeito surpreendente. Então, olhei para cima e, no meio da nuvem de poeira, distingui o céu azul. Fiquei siderado. Já não existia tecto! Apenas um caminho até ao céu, barras de madeiras seguras de lado por paredes que, em desequilíbrio mas ainda de pé, rangiam. Com horror, reparei que o tronco do homem que há pouco me pedira ajuda desaparecera, decepado, e só as suas pernas continuavam presas, a baloiçar no ar. Fechei os olhos, dei meia volta e, atabalhoado, trepei pelos escombros, saindo dali. Quando tive a primeira possibilidade de examinar o pátio, espantei-me... A prisão do Limoeiro, tal como a conhecera, deixara de existir! Ainda havia paredes de pé, mas os telhados e os interiores tinham desabado. O pátio era uma amálgama de destroços, de terra, de poeira e de cadáveres. Dezenas de corpos estavam soterrados, pernas e braços e cabeças espreitavam dos escombros. No chão, os moribundos, cobertos de sangue e pó e agonia, tentavam movimentar-se, lembrando sonâmbulos atordoados. Ouviam-se pedidos de ajuda, gemidos de dor e sofrimento. Compreendi imediatamente que a cidade fora atingida por um terrível tremor de terra. Escutara alguns relatos no passado, e destruição como aquela não era possível de explicar de outra forma. Quando a calma regressou, olhei para a saída da prisão. O portão desaparecera e podia ver-se a rua. Não havia soldados em lado algum, ou pelo menos não os via. Examinei de novo o pátio, à procura de Muhammed. A última vez que o vira fora ali, antes de ser apanhado pelos espanhóis. De repente, alguém me chamou: ei, cabrón... Era o Cão Negro. Preso debaixo de um monte de pedras, coberto de pó, sangrando da cabeça e dos braços, gritou-me insultos e promessas de morte e vingança, ao ver-me a andar para a rua. Sem responder, segui e só parei a cinco metros do portão. Lá fora, só se viam nuvens de poeira e montes de entulho. Um desertor francês, chamado Maurice, passou por mim em passo rápido. Ia com um dos braços tombado, um esgar de dor na cara, o cabelo coberto de pó, e incentivou-me, correndo ao pé-coxinho: foge, foge. Os soldados morreram... Saltitou sete ou oito metros à minha frente, e depois ouviu-se um tiro e o francês caiu morto. Dobrei os joelhos e deitei-me sobre a terra irregular. O disparo viera de um local à minha direita, mas não sabia se o soldado estava sozinho ou acompanhado. Rastejei nessa direcção, descrevendo um semicírculo, de forma a aproximar-me do soldado de lado. Mas, ao ouvir gritos, escondi-me atrás de umas pedras. Pelo caminho que eu e o francês tínhamos percorrido aproximavam-se, lentos e de sobreaviso, o Cão Negro e os seus espanhóis. Escutei as ameaças verbais do guarda, prometendo novos disparos. O mastodonte castelhano não se intimidou. Fez um sinal aos seus acompanhantes e separaram-se, afastando-se entre eles. Depois, a um sinal do líder, desataram todos a correr ao mesmo tempo na direcção do portão. Ainda se ouviu um tiro, mas nenhum dos espanhóis foi atingido. De repente, o Cão Negro deu um salto para a frente e aterrou sobre o soldado. Na sua mão surgiu a barra de ferro, e com ela rachou o crânio do pobre guarda num segundo. Depois, sacou-lhe a espingarda, uma faca e também uma sacola, talvez com munições. Sorriu para os amigos, triunfante, e ouviram-se gritos de satisfação. Reagruparam-se e caminharam para o portão, saindo para a rua, para a liberdade.
Deixei-me ficar uns minutos quieto, à escuta. Não parecia haver mais nenhum guarda junto ao que restava do portão, e decidi avançar. Contudo, ouvi nas minhas costas mais gritos e virei-me. No pátio, cerca de trinta metros atrás de mim, um soldado com uma pistola na mão perseguia Muhammed, que corria, aos ziguezagues, para evitar ser atingido. Meti os dedos à boca e assobiei, um som estridente, que ele de imediato reconheceu. Flectiu na minha direcção, com o soldado atrás». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT