segunda-feira, 3 de junho de 2019

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «O que é a carne? O que é esse Isso que recobre o osso, este novelo liso e convulso…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Da Noite
[…]
Vem dos vales a voz. Do poço.
Dos penhascos. Vem funda e fria
Amolecida e terna, anémonas que vi:
Corfu. No mar Egeu. Em Creta.
Vem revestida às vezes de aspereza
Vem com brilhos de dor e madrepérola
Mas ressoa cruel e abjecta
Se me proponho ouvir. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem do Nada.
Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita.

Dirás que sonho o dementado sonho de um poeta
Se digo que me vi em outras vidas
Entre claustros, pássaros, de marfim uns barcos?
Dirás que sonho uma rainha persa
Se digo que me vi dolente e inaudita
Entre amoras negras, nêsperas, sempre-vivas?
Mas não. Alguém gritava: acorda, acorda Vida.
E se te digo que estavas a meu lado
E eloquente e amante e de palavras ávido
Dirás que menti? Mas não. Alguém gritava:
Palavras..., apenas sons e areia. Acorda.
Acorda Vida.

Águas. Onde só os tigres mitigam a sua sede.
Também eu em ti, feroz, encantoada
Atravessei as cercaduras raras
E me fiz máscara, mulher e conjectura.
Águas que não bebi. Crespusculares. Cavas.
Códigos que decifrei e onde me vi mil vezes
Inconexa, parca. Ah, toma-me de novo
Antíquissima, nova. Como se fosses o tigre
A beber daquelas águas.

O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor dobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
O que é o osso? Este viço luzente
Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome.

Dunas e cabras. E minha alma voltada
Para o fosco profundo da Tua Cara.
Passeio meu caminho de pedra, leite e pêlo.
Sou isto: um alguém-nada que te busca.
Um casco. Um cheiro. Esvazia-me de perguntas.
De roteiro. Que eu apenas suba.

Costuro o infinito sobre o peito.
E no entanto sou água fugidia e amarga.
e sou crível e antiga como aquilo que vês:
Pedras, frontões no Todo inamovível.
Terrena, me adivinho montanha algumas vezes.
Recente, inumana, inexprimível
Costuro o infinito sobre o peito
Como aqueles que amam».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT