quarta-feira, 12 de junho de 2019

Memória de Elefante. António Lobo Antunes. «O psiquiatra pegou no telefone e pediu para ligarem ao hospital onde um amigo trabalhava: é o momento de me agarrar a qualquer coisa, decidiu ele»

jdact e wikipedia

«(…) As cordas de nylon dos tendões da nuca esticavam-se de esforço sob a pele e o médico pensou que era como se Fellini houvesse invadido de súbito um desses belos dramas paralisados de Tchekov em que gaivotas gasosas definham de dor contida atrás da chamazinha vacilante de um sorriso, e que para lá da porta fechada as empregadas se deviam principiar a agitar de inquietações solícitas, imaginando-o enforcado no elástico preto de uma liga. A Charlotte Brontë, saciada, empoleirou-se no trono da marquesa como quem regressa de motu próprio ao orgulho intransigente do exílio. Seu grandessíssimo cab… de mer…, articulou ela em tom distraído de quinquagenária que conversa com as amigas contando as malhas do tricot. O psiquiatra apressou-se a aproveitar essa favorável disposição de humor para se escapar à sorrelfa para a trincheira da sala de pensos. Uma enfermeira que ele estimava e cuja amizade tranquila apaziguara mais de uma vez os impulsos destrutivos das suas fúrias de maremoto preparava pacificamente as medicações do almoço vertendo comprimidos idênticos a smarties num tabuleiro repleto de copinhos de plástico.
Deolinda, informou-a ele, estou a tocar no fundo. Ela abanou o rosto em bico de tartaruga bondosa: nunca mais tem fim essa descida? O médico ergueu os botões de punho ao tecto de caliça descamada numa patética imploração bíblica, na esperança de que a teatralidade voluntária ocultasse parte do seu sofrimento verdadeiro: você encontra-se (observe-me bem) por felicidade sua e infelicidade minha defronte do maior espeleólogo da depressão: oito mil metros de profundidade oceânica da tristeza, negrume de águas gelatinosas sem vida salvo um ou outro repugnante monstro sublunar de antenas, e tudo isto sem batiscafo, sem escafandro, sem oxigénio, o que significa, obviamente, que agonizo. Porque é que não volta para casa?, perguntou a enfermeira que possuía o sentimento prático da existência e a certeza inabalável de que ainda que a linha recta não seja forçosamente o caminho mais curto entre dois pontos é pelo menos o aconselhável à deslabirintação dos espíritos tortuosos.
O psiquiatra pegou no telefone e pediu para ligarem ao hospital onde um amigo trabalhava: é o momento de me agarrar a qualquer coisa, decidiu ele. Porque não sei, porque não posso, porque não quero, porque perdi a chave, declarou à enfermeira sabendo perfeitamente que mentia. Eu minto e ela sabe que eu minto e que eu sei que ela sabe que eu minto e aceita isso sem zanga nem sarcasmo, verificou o médico. De longe em longe cabe-nos a sorte de topar com uma pessoa assim, que gosta de nós não apesar dos nossos defeitos mas com eles, num amor simultaneamente desapiedado e fraternal, pureza de cristal de rocha, aurora de maio, vermelho de Velázquez. Olhe, disse o médico tapando o bocal com a manga, nem calcula quanto lhe agradeço você existir. Nesse instante a voz do amigo chegou pequenina ao telefone, formulou com cuidado: está? (E ele fantasiou uma pinça delicada colhendo suavemente qualquer coisa de frágil e precioso.) Sou eu, respondeu rápido porque sentiu que principiava a emocionar-se. Estou a tocar o fundo, o fundo do fundo, e precisava de ti. No silêncio do telefone adivinhou o amigo a desenrolar mentalmente na cabeça o horário do seu dia: posso descombinar um almoço, anunciou por fim, íamos juntos a uma dessas manjedouras que tu frequentas e durante o hamburger descarregavas a alma.
À uma nas Galerias, resolveu o psiquiatra fitando a enfermeira que saía com o tabuleiro repleto de grãozinhos vermelhos, amarelos e azuis a estremecerem nos receptáculos de plástico. E obrigado. À uma, confirmou o amigo. O médico pousou o telefone com a velocidade suficiente para não ouvir o som do aparelho a desligar-se, inútil ruído penoso que lhe recordava discussões azedas alimentadas pelo despeito e pelo ciúme. Compunha a gravata que a Charlotte Brontë desarrumara, em busca da bissectriz dos colarinhos, quando o Napoleão da dentadura postiça, chocalhando centenas de molares, o veio avisar que o chamavam da Urgência. Do quarto de banho em frente saiu a correr uma rapariga meia nua abraçada a um molho de jornais em farrapos: há que apertar a tarraxa à Nélia, opinou o Corso das mandíbulas desmontáveis. Não se consegue aturar. Ainda agora me disse que queria ver o meu sangue a escorrer aos saltos pelo corredor da enfermaria». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979, 1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT