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As cordas de nylon dos tendões da
nuca esticavam-se de esforço sob a pele e o médico pensou que era como se
Fellini houvesse invadido de súbito um
desses belos dramas paralisados de Tchekov em que gaivotas gasosas definham de
dor contida atrás da chamazinha vacilante de um sorriso, e que para lá da porta
fechada as empregadas se deviam principiar a agitar de inquietações solícitas,
imaginando-o enforcado no elástico preto de uma liga. A Charlotte Brontë,
saciada, empoleirou-se no trono da marquesa como quem regressa de motu próprio
ao orgulho intransigente do exílio. Seu grandessíssimo cab… de mer…, articulou
ela em tom distraído de quinquagenária que conversa com as amigas contando as
malhas do tricot. O psiquiatra apressou-se a aproveitar essa favorável
disposição de humor para se escapar à sorrelfa para a trincheira da sala de
pensos. Uma enfermeira que ele estimava e cuja amizade tranquila apaziguara
mais de uma vez os impulsos destrutivos das suas fúrias de maremoto preparava
pacificamente as medicações do almoço vertendo comprimidos idênticos a smarties
num tabuleiro repleto de copinhos de plástico.
Deolinda, informou-a ele, estou a tocar no fundo. Ela abanou o rosto em
bico de tartaruga bondosa: nunca mais tem fim essa descida? O médico ergueu os
botões de punho ao tecto de caliça descamada numa patética imploração bíblica,
na esperança de que a teatralidade voluntária ocultasse parte do seu sofrimento
verdadeiro: você encontra-se (observe-me bem) por felicidade sua e infelicidade
minha defronte do maior espeleólogo da depressão: oito mil metros de
profundidade oceânica da tristeza, negrume de águas gelatinosas sem vida salvo
um ou outro repugnante monstro sublunar de antenas, e tudo isto sem batiscafo,
sem escafandro, sem oxigénio, o que significa, obviamente, que agonizo. Porque
é que não volta para casa?, perguntou a enfermeira que possuía o sentimento
prático da existência e a certeza inabalável de que ainda que a linha recta não
seja forçosamente o caminho mais curto entre dois pontos é pelo menos o
aconselhável à deslabirintação dos espíritos tortuosos.
O psiquiatra pegou no telefone e pediu para ligarem ao hospital onde um
amigo trabalhava: é o momento de me agarrar a qualquer coisa, decidiu ele. Porque
não sei, porque não posso, porque não quero, porque perdi a chave, declarou à
enfermeira sabendo perfeitamente que mentia. Eu minto e ela sabe que eu minto e
que eu sei que ela sabe que eu minto e aceita isso sem zanga nem sarcasmo,
verificou o médico. De longe em longe cabe-nos a sorte de topar com uma pessoa
assim, que gosta de nós não apesar dos nossos defeitos mas com eles, num amor
simultaneamente desapiedado e fraternal, pureza de cristal de rocha, aurora de
maio, vermelho de Velázquez. Olhe, disse o médico tapando o bocal com a manga,
nem calcula quanto lhe agradeço você existir. Nesse instante a voz do amigo
chegou pequenina ao telefone, formulou com cuidado: está? (E ele fantasiou uma
pinça delicada colhendo suavemente qualquer coisa de frágil e precioso.) Sou
eu, respondeu rápido porque sentiu que principiava a emocionar-se. Estou a
tocar o fundo, o fundo do fundo, e precisava de ti. No silêncio do telefone
adivinhou o amigo a desenrolar mentalmente na cabeça o horário do seu dia: posso
descombinar um almoço, anunciou por fim, íamos juntos a uma dessas manjedouras
que tu frequentas e durante o hamburger descarregavas a alma.
À uma nas Galerias, resolveu o psiquiatra fitando a enfermeira que saía com
o tabuleiro repleto de grãozinhos vermelhos, amarelos e azuis a estremecerem
nos receptáculos de plástico. E obrigado. À uma, confirmou o amigo. O médico
pousou o telefone com a velocidade suficiente para não ouvir o som do aparelho
a desligar-se, inútil ruído penoso que lhe recordava discussões azedas
alimentadas pelo despeito e pelo ciúme. Compunha a gravata que a Charlotte
Brontë desarrumara, em busca da bissectriz dos colarinhos, quando o Napoleão da
dentadura postiça, chocalhando centenas de molares, o veio avisar que o
chamavam da Urgência. Do quarto de banho em frente saiu a correr uma rapariga
meia nua abraçada a um molho de jornais em farrapos: há que apertar a tarraxa à
Nélia, opinou o Corso das mandíbulas desmontáveis. Não se consegue aturar.
Ainda agora me disse que queria ver o meu sangue a escorrer aos saltos pelo
corredor da enfermaria». In António Lobo Antunes, Memória de Elefante, 1979,
1983, Publicações dom Quixote, BIS, Grupo Leya, 1983, ISBN 978-989-660-091-4.
Cortesia
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