terça-feira, 18 de junho de 2019

O Delfim. José Cardoso Pires. «O delfim é o engenheiro Tomás Manuel Palma Bravo. Uma espécie de cognome, entre outros de menor valia e alcance. Mas, sobretudo, uma forma de estar no mundo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Alongando o braço para alcançar os cigarros e a boquilha, Maria das Mercês fica estirada ao comprido. Não se mexe durante muito tempo, é capaz de se manter assim uma eternidade. Deitada e de pernas penduradas no braço do maple, está voltada para as traves do tecto onde se reflecte o brilho da lareira.(...) As mãos repousam sobre o vinco do slip. Ali, junto desse contorno (de rendas?, de nylon?) que ela afaga por cima do tecido das calças, a pele lisa das coxas tem o toque mais precioso de um corpo de mulher (...)» In José Cardoso Pires

«O delfim é o engenheiro Tomás Manuel Palma Bravo. Uma espécie de cognome, entre outros de menor valia e alcance. Mas, sobretudo, uma forma de estar no mundo, uma forma de ficar na história, uma forma de ascender ao plano do mito. Mas O Delfim é também o título de um romance, este romance que o leitor vai ler, e onde se fala da vida, e da proximidade da morte, de Palma Bravo. Talvez seja conveniente começarmos por chamar a atenção para o facto de que também o romance, o livro de Cardoso Pires, foi envolvido nessa atmosfera mítica que parece desprender-se do seu aparente herói, e tem hoje um lugar muito nítido, e obviamente privilegiado, na literatura de ficção do nosso século XX. Mais do que procedermos a análises minuciosas, e inevitavelmente fastidiosas na sua tecnicidade específica, repetindo as múltiplas interpretações que a obra de Cardoso Pires tem suscitado, pretendemos, fundamentalmente, considerar essa força mítica expansiva que envolve a personagem, o romance, o que o próprio autor escreveu sobre o romance, ou à margem dele, e o que críticos e leitores lhe têm vindo a acrescentar. E um nome, em primeiro lugar, um nome apropriado que se torna próprio e emblema de um sentido natural da propriedade: o Delfim como herdeiro do poder numa linha de soberania, mas também o delfim como ave prenunciadora de desgraças e catástrofes. Mas é sobretudo o nome como emanação de um lugar: a lagoa. Porque é da lagoa, esse corpo de água e incessante respiração, essa voragem significante, porque é da lagoa que tudo parte, Lagoa, para a gente daqui quer dizer coração, refúgio de abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas da lei. Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses-operários mede o universo [...]. E, veja-se, é igualmente a lagoa (ou a nuvem em sua representação) que me chamou aqui e me tem entre quatro paredes, à espera e a recordar. Há assim um fio enigmático que nos une: todos nós, de José Cardoso Pires, escritor, até aos narradores em que o escritor se representa, dos tipógrafos aos capistas, dos editores aos livreiros, dos críticos aos leitores, dos professores aos estudantes, todos continuamos a ser, de certo modo, súbditos dessa lagoa que o texto de Cardoso Pires inventa para passar a ser apenas a sombra da sua própria invenção. Há, portanto, uma circularidade que se alarga, é ela que nos envolve, e é para ela que solicitamos a cumplicidade do leitor […]». In Eduardo Prado Coelho.

Cá estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel Palma Bravo, o Engenheiro. Repare-se que tenho a mão direita pousada num livro antigo, Monografia do Termo da Gafeira, ou seja, que tenho a mão sobre a palavra veneranda de certo abade que, entre mil setecentos e noventa, mil oitocentos e um, decifrou o passado deste território. É nele que penso também, nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo, por entre casas, quelhas e penedos, à distância de um primeiro andar. Sou um visitante de pé (e em corpo inteiro, como numa fotografia de álbum), um Autor apoiado na lição do mestre. Lavatório de ferro à esquerda, mesa de trabalho à direita; em fundo, a porta com a espingarda e a cartucheira penduradas no cabide. Pormenor importante: enfrento a janela de guilhotina que dá para o único café da povoação, do outro lado da rua, e, mais para diante, vejo o largo, a estrada de asfalto e um horizonte de pinhais dominado por uma coroa de nuvens: a lagoa. Algures, no corredor, a dona da casa chama pela criadita. Temos, pois, o Autor instalado na janela duma pensão de caçadores. Sente vida por baixo e à volta dele, sim, pode senti-la, mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com intenção, no tal sopro de nuvens que é a lagoa. Não a vê dali, bem o sabe, porque fica no vale, para lá dos montes, secreta e indiferente. No entanto, aprendeu a assinalá-la por aquele halo derramado à flor das árvores, e diz: lá está ela, a respirar. Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcaria o pó com esta palavra: Delfim. Seria uma dedicatória. Um epitáfio, também. Seis letras que, de qualquer maneira, não teriam mais do que a justa e exacta duração que a poeira consentisse até as cobrir de novo». In José Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª edição, Moraes Editores, Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom Quixote, 1988, 2003, ISBN 972-201-654-7.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT