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«(…) Um
grande paquete claro aproximava-se do cais a ameaçar destruir Bissau com o gume
da proa onde uma sereia esculpida, de bacia gigantesca, separava a espuma com a
lã doirada do sexo: Não somos de parte alguma agora, respondeu o marido a
designar o barco coroado de flâmulas, de emblemas reais, do estandarte do
almirante Afonso Albuquerque no topo do mastro principal, custoso de distinguir
sobre as cornijas, os guindastes, as gruas e os repuxos de agulhas das
palmeiras. Embrulharam a fotografia do casamento e o cofrezinho de cisnes de
madrepérola em que se acumulavam recordações milenárias (um anelzito de safira,
uma chupeta, medalhinhas de Fátima, um perfil magro de menina), o homem enfiou
o dinheiro que sobrava nas meias por lavar, e deitou-se em ceroilas, consciente
da chuva que lhe turvava o sono, a pensar no veleiro que os haveria de
transportar para a Europa, de cordame bambo sob as nuvens escuras pesadas de
adamastores e humidade. Como habitualmente nas últimas noites a esposa
permaneceu horas a rebolar as cataratas no quarto lembrando-se dos jacintos do
funeral da filha, presa aos ferros da cabeceira pelos tendões dos pulsos
manchados pelas sardas da velhice. Não te esqueças da quina de costura, foi a
última coisa que o homem lhe ouviu antes de se submergir numa geleia de coma
onde flutuavam miragens do passado exumadas das trevas. E na tarde imediata,
seca apesar da grafite do céu, acotovelaram a multidão de negros que se
amontoava no cais na esperança de barris de peixe ou das consolas e armários
que os estivadores desprezassem. Devido à ausência da chuva albatrozes e cegos
albinos surgiam das furnas dos vagões para girar sobre as fragatas num rodopio
de brados. As pedras do porto luziam de água ou remexiam-se de medusas, e
assaltou-os a impressão de distinguir o vizinho barbudo dispersando pretos com
a pistola a fim de desimpedir a escada de acesso ao tombadilho, que uma fieira
de passageiros tão idosos quanto eles trepava amparada aos corrimãos sebosos. O
mar espessava em torno das hélices uma baba que excitava a gula dos cegos e dos
pássaros. As mangueiras e as palhotas de Bissau desapareceram das vigias.
Grumetes de camisa às listras marinhavam pelas vergas desfraldando a lona de
circo das velas. A mulher, no colchão inferior do beliche, apoiava o cotovelo
na quina de costura que uma bainha de serapilheira protegia do rescaldo das
ondas. Depois de três meses de viagem um solzinho cor de pêssego despontou no
meio do granito das nuvens e daí a nada avistaram o contínuo fervedoiro de
mercado sírio de Lixboa a pular na distância, muralhas de castelo, fogueiras de
judeus, procissões de flagelados, um trânsito simultâneo de carroças de
escravos, cruzadores e bicicletas. Senhoras de sorriso inalteravelmente
bondoso, com distintivos de metal na lapela, distribuíram-nos por autocarros de
pára-brisas de três dioptrias que estacionavam no cais e que seguiram, ao longo
das manias dos eléctricos e das demoradas defecações das mulas dos coches, até
ao vestíbulo de um hotel de cinco estrelas perto de um liceu conventual e de um
renque de acácias moribundas, e a cujo balcão se procedia, à esquina de sofás
habitados por finlandeses de calções de praia, à distribuição cantada, de lota
de peixe, das suites.
Após cinquenta e três anos num
cubículo de Bissau sofrendo mosquitos e cacimbo era-lhes difícil imaginar o
ilimitado tabuleiro de damas do chão de mármore, as tapeçarias de hibiscos nas
paredes, grooms disfarçados de hussardos das invasões francesas, portas que se
descerravam sozinhas no silêncio misterioso das estrelas-do-mar. A cabina
espacial do elevador, acostumado a assobiar de leve por órbitas de cometas,
depositou-os numa espécie de corredor de basílica com os vãos dos altares
laterais numerados a algarismos de prata. Na cama que nos ofereceram, tão grande
como os areais de Bolama, focinhos de tubarão navegavam na goma dos lençóis». In
António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN
978-972-205-995-4.
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