quarta-feira, 26 de junho de 2019

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «Então, padre, o senhor não crê que Deus castigue os povos pelos pecados dos reis? Creio sobretudo que Deus castiga os povos pela sua estupidez e pela dos seus governantes…»

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«(…) Refere-se Vossa Excelência à fé do padre Villaescusa? Basta olhar para ele. Que Deus me castigue se me engano, mas esse frade não acredita em Deus. Que diz o senhor, padre Almeida? É desses homens que falam, gritam, agitam, ameaçam, tudo em nome da doutrina mais pura, mas que jamais se atrevem a olhar para dentro de si próprios. Alguma vez o ouviu referir-se ao Evangelho? Acredita Vossa Excelência que tenha a menor noção de caridade? O padre Villaescusa acredita em tudo o que a Santa Madre Igreja acredita, mas, sobretudo, acredita na Igreja, à qual pertence e que encarrega de acreditar por ele; dentro da qual espera progredir e, sobretudo, mandar. Suspeita de que nunca chegará a ser Papa, mas não põe de parte vir um dia a ocupar esse cadeirão que Vossa Excelência ocupa, nem que seja apenas para ordenar um auto-de-fé e a seguir morrer. É quase certo que, nessa altura, a morte não o assustaria e que a receberia com o prazer de quem alcançou no mundo tudo o que desejou. O Inquisidor-mor não lhe respondeu imediatamente. Padre Almeida, para quem viveu tanto tempo no meio dos selvagens, o senhor manifesta um bom conhecimento dos homens civilizados.
Foi precisamente porque atingi esse conhecimento que preferi viver entre os índios. Não acreditariam no nosso Deus, mas acreditavam a sério nos deles. Soou uma campainha de prata anunciando que o intervalo tinha terminado. Entraram na sala pela mesma ordem por que tinham saído, e ocuparam os seus cadeirões. O Inquisidor-mor concedeu a palavra ao padre Villaescusa. Reverendos padres, foram três as questões que nos congregaram nesta sessão solene: posta de lado a primeira, cuja solução acato por obediência, embora convencido de que, nessa comissão encarregada de a resolver, haverá oportunidade de ouvir a minha voz, passo a expor a segunda: Sua Majestade o Rei manifestou, dando com isso provas de um descaramento que só pode tolerar-se por ser régio, o seu desejo de ver a Rainha nua. As leis de Deus opõem-se; as do reino também, ou, pelo menos, os nossos inveterados costumes e protocolos, que têm força de lei. Qual é a opinião de Vossas Paternidades? Respondeu-lhe um silêncio, quebrado finalmente pelo padre Almeida, alguém admitiu na sua consciência que inevitavelmente.
Penso que, por se tratar de uma questão pessoal, excede as nossas incumbências, a não ser que o padre Villaescusa demonstre o contrário. Para o demonstrar, respondeu o capuchinho, com uma ponta de exaltação temperada pela segurança com que falava, bastar-me-á enunciar a terceira questão, profundamente relacionada com a segunda e também com a primeira: o Senhor que tudo pode, premiador dos bons e castigador dos maus, torna extensiva aos reinos de Espanha a sua indignação pelos pecados do Rei. O povo sabe-o, e anda receoso de sofrer um castigo pelos males que não fez. Neste momento espera-se uma grande batalha nos Países Baixos, decisiva para as nossas armas, e a Frota das Índias aproxima-se das nossas costas. É lógico que Deus nos castigue fazendo-nos perder a batalha e deixando que a frota seja assaltada e roubada pelos corsários ingleses. Não vejo a lógica em parte nenhuma. Um frio medular sacudiu os ossos dos presentes, salvo os do Inquisidor-mor, que assistia ao debate com dissimulado regozijo.
Então, padre, o senhor não crê que Deus castigue os povos pelos pecados dos reis? Creio sobretudo que Deus castiga os povos pela sua estupidez e pela dos seus governantes, e que os ajuda quando estes não são estúpidos. Rogo a Vossa Paternidade que considere o estado dos grandes países nossos vizinhos. A Inglaterra é já uma grande potência, senhora do mar; é-o também, embora só da terra, a França; não o é já o Grão-turco, modelo de desgoverno. Da defunta rainha de Inglaterra, que levou o seu país à prosperidade, não temos informações muito favoráveis acerca dos seus costumes, e menos ainda da sua fé. O cardeal que governa em França também não é um exemplo de virtudes pessoais, mas parece inteligente e enérgico. De modo que a sua teoria só pode aplicar-se à Espanha. Não tenho inconveniente, padre, em aceitar a sua resposta, com a condição de que substitua Deus pelo Diabo. Uma protecção mais forte que a de Deus, ou uma inibição de Deus em benefício do Diabo?
Não estou nos segredos de Deus, não posso dizer como levará a cabo o seu castigo. A única coisa que sei é que a presença do Diabo é clara, como o é em toda a ocasião em que os desígnios de Deus são frustrados pelos homens. Por um mau governo, por exemplo? Ou por um bom governo, que importa? E dispõe Vossa Reverência de algum indício que denuncie a presença, ou a intervenção, do Diabo no caso que nos ocupa?» In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da Caminho/JDACT