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«(…) Refere-se Vossa Excelência à fé do padre Villaescusa? Basta olhar
para ele. Que Deus me castigue se me engano, mas esse frade não acredita em
Deus. Que diz o senhor, padre Almeida? É desses homens que falam, gritam,
agitam, ameaçam, tudo em nome da doutrina mais pura, mas que jamais se atrevem
a olhar para dentro de si próprios. Alguma vez o ouviu referir-se ao Evangelho?
Acredita Vossa Excelência que tenha a menor noção de caridade? O padre
Villaescusa acredita em tudo o que a Santa Madre Igreja acredita, mas,
sobretudo, acredita na Igreja, à qual pertence e que encarrega de acreditar por
ele; dentro da qual espera progredir e, sobretudo, mandar. Suspeita de que
nunca chegará a ser Papa, mas não põe de parte vir um dia a ocupar esse
cadeirão que Vossa Excelência ocupa, nem que seja apenas para ordenar um
auto-de-fé e a seguir morrer. É quase certo que, nessa altura, a morte não o
assustaria e que a receberia com o prazer de quem alcançou no mundo tudo o que
desejou. O Inquisidor-mor não lhe respondeu imediatamente. Padre Almeida, para
quem viveu tanto tempo no meio dos selvagens, o senhor manifesta um bom
conhecimento dos homens civilizados.
Foi precisamente porque atingi esse conhecimento que preferi viver
entre os índios. Não acreditariam no nosso Deus, mas acreditavam a sério nos
deles. Soou uma campainha de prata anunciando que o intervalo tinha terminado.
Entraram na sala pela mesma ordem por que tinham saído, e ocuparam os seus
cadeirões. O Inquisidor-mor concedeu a palavra ao padre Villaescusa. Reverendos
padres, foram três as questões que nos congregaram nesta sessão solene: posta
de lado a primeira, cuja solução acato por obediência, embora convencido de
que, nessa comissão encarregada de a resolver, haverá oportunidade de ouvir a
minha voz, passo a expor a segunda: Sua Majestade o Rei manifestou, dando com
isso provas de um descaramento que só pode tolerar-se por ser régio, o seu
desejo de ver a Rainha nua. As leis de Deus opõem-se; as do reino também, ou,
pelo menos, os nossos inveterados costumes e protocolos, que têm força de lei.
Qual é a opinião de Vossas Paternidades? Respondeu-lhe um silêncio, quebrado
finalmente pelo padre Almeida, alguém admitiu na sua consciência que
inevitavelmente.
Penso que, por se tratar de uma questão pessoal, excede as nossas
incumbências, a não ser que o padre Villaescusa demonstre o contrário. Para o
demonstrar, respondeu o capuchinho, com uma ponta de exaltação temperada pela
segurança com que falava, bastar-me-á enunciar a terceira questão,
profundamente relacionada com a segunda e também com a primeira: o Senhor que
tudo pode, premiador dos bons e castigador dos maus, torna extensiva aos reinos
de Espanha a sua indignação pelos pecados do Rei. O povo sabe-o, e anda receoso
de sofrer um castigo pelos males que não fez. Neste momento espera-se uma
grande batalha nos Países Baixos, decisiva para as nossas armas, e a Frota das
Índias aproxima-se das nossas costas. É lógico que Deus nos castigue
fazendo-nos perder a batalha e deixando que a frota seja assaltada e roubada
pelos corsários ingleses. Não vejo a lógica em parte nenhuma. Um frio medular
sacudiu os ossos dos presentes, salvo os do Inquisidor-mor, que assistia ao
debate com dissimulado regozijo.
Então, padre, o senhor não crê que Deus castigue os povos pelos pecados
dos reis? Creio sobretudo que Deus castiga os povos pela sua estupidez e pela
dos seus governantes, e que os ajuda quando estes não são estúpidos. Rogo a
Vossa Paternidade que considere o estado dos grandes países nossos vizinhos. A
Inglaterra é já uma grande potência, senhora do mar; é-o também, embora só da
terra, a França; não o é já o Grão-turco, modelo de desgoverno. Da defunta
rainha de Inglaterra, que levou o seu país à prosperidade, não temos
informações muito favoráveis acerca dos seus costumes, e menos ainda da sua fé.
O cardeal que governa em França também não é um exemplo de virtudes pessoais,
mas parece inteligente e enérgico. De modo que a sua teoria só pode aplicar-se
à Espanha. Não tenho inconveniente, padre, em aceitar a sua resposta, com a
condição de que substitua Deus pelo Diabo. Uma protecção mais forte que a de
Deus, ou uma inibição de Deus em benefício do Diabo?
Não estou nos segredos de Deus, não posso dizer como levará a cabo o
seu castigo. A única coisa que sei é que a presença do Diabo é clara, como o é
em toda a ocasião em que os desígnios de Deus são frustrados pelos homens. Por
um mau governo, por exemplo? Ou por um bom governo, que importa? E dispõe Vossa
Reverência de algum indício que denuncie a presença, ou a intervenção, do Diabo
no caso que nos ocupa?» In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del
Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não
demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.
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