quarta-feira, 26 de junho de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Luciani era, de facto, único, uma homenagem ao homem que o nomeara bispo e ao que o fizera cardeal, João e Paulo, um e outro, pessoas diferentes, unidos agora num só homem com intentos próprio»


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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) O papel, no seu interior, tinha escrito as palavras Via-crúcis, um símbolo do Caminho da Cruz. Todos estavam emocionados dentro do Conclave: o Espírito Santo havia descido, pelo menos assim pensava a maioria. Era a vontade de Deus, seria naquele momento, sabiam-no com toda a certeza. Um papa escolhido por todos e por Um, por Todos e por um, num todo que daria origem a um novo Pontificado, um novo Santo Padre, o novo líder dos católicos. E assim foi, sendo Luciani contemplado com noventa e nove votos, o cardeal Siri, com onze, e o brasileiro Lorscheider, com um, o de Luciani, em quem ele votara sempre. Destino traçado, destino percorrido, aplausos fervorosos, pouco mais de um dia para escolher um entre cento e onze: só mesmo inspiração divina. Tudo resolvido às seis e cinco da tarde, bem a tempo da hora de jantar. As portas da Capela Sistina abriram-se e entraram os mestres-de-cerimónia, que seguiram o cardeal Carmelengo Villot, secretário de Estado do Vaticano do papa anterior e guardador das chaves de São Pedro até o final da eleição, ao lugar onde estava sentado Albino Luciani. Aceita a sua eleição canónica para Sumo Pontífice?, perguntou o cardeal francês.
Toda a capela se fixava em Luciani, paredes, tectos, pinturas, as figuras de Miguel Ângelo e o colégio cardinalício. Riberio e Willebrands encorajavam-no com o olhar, e Villot voltou a formular a pergunta.  Que Deus vos perdoe pelo que fizeram comigo, respondeu por fim. Aceito. Tudo dentro do protocolo estabelecido havia séculos; um cerimonial que iria prosseguir até ao final da sua vida, uma vida recém-perdida, para alguns; a luz de Cristo na Terra, para outros. Fosse como fosse, o Lancia 2000 permaneceria estacionado por muito tempo, e tão cedo Luciani não veria a sua dilecta Veneza. Por que nome deseja ser chamado? Luciani titubeou novamente e ao fim de alguns momentos pronunciou, sorrindo pela primeira vez: João Paulo I.
O nome escolhido por um novo papa indica o seu rumo. A mensagem que ele deixava com aquele nome era a de que nada voltaria a ser como antes. Muitos ficaram satisfeitos; começavam com uma inovação. Nenhum outro papa tivera dois nomes em quase dois mil anos de história. Luciani era, de facto, único, uma homenagem ao homem que o nomeara bispo e ao que o fizera cardeal, João e Paulo, um e outro, pessoas diferentes, unidos agora num só homem com intentos próprios. Meus parabéns, Santo Padre. Era Karol Wojtyla quem falava. A grande barafunda imperava na Capela. Luciani fora levado para a sacristia, os cardeais queimavam os boletins de voto com os compostos químicos que faziam embranquecer o fumo; mas, ao fim de algumas baforadas brancas, estas começaram a sair negras, talvez pela sujeira da chaminé, e as pessoas na Praça de São Pedro supuseram que ainda não havia papa. Os irmãos Gammarelli, alfaiates do Vaticano, andavam desesperados à procura de uma batina branca que servisse. Por norma, tinham sempre três prontas antes de cada Conclave, uma pequena, outra média e ainda uma grande, mas daquela vez haviam aprontado mais uma, maior ainda que a grande, tendo em conta a lista dos doze papáveis. Luciani era muito magro e não fora contemplado nessa lista. Acabaram finalmente por se resolver e conseguiram vesti-lo pela primeira vez, como Santo Padre do povo católico.
Suenens aproximou-se e cumprimentou-o. Santo Padre, obrigado por ter aceitado. Luciani sorriu e disse: talvez fosse melhor se eu tivesse declinado. E por que não o fez? Porque se sentira desarmado pela rapidez do desenrolar dos acontecimentos, pela maioria expressiva, por sua humildade verdadeira e também porque, no fundo, se sentia capaz de executar a árdua tarefa. De outra forma, não a teria aceito. Os cardeais começaram a entoar o Te Deum. As pessoas lá fora se dispersavam por pensarem que ainda não havia papa. O próprio comandante da Guarda Suíça, obrigado a receber o novo papa com uma saudação de lealdade de todos os homens, não tinha o séquito pronto para o acompanhar. A Rádio Vaticano dizia que o fumo era branco e negro; os irmãos Gammarelli discutiam na sacristia, culpando-se reciprocamente. No meio de tudo isso, a enorme porta da varanda da Basílica de São Pedro abriu-se, e a voz do cardeal Felici troou pelos alto-falantes. Attenzione.
As pessoas acorreram todas para a praça novamente e ficaram em silêncio. Annuncio vobis gaudium magnum! Habemus papam! Diego Lorenzi era secretário de Luciani havia dois anos. Acompanhara-o a Roma desde Veneza e era um dos milhares que estavam na Praça de São Pedro à espera. A fumaça que saía da chaminé desde as seis e vinte e cinco não era preta nem branca, era cinza, e estava naquilo há praticamente uma hora. Ao seu lado, uma família de suecos olhava para a batina negra que trajava. A menor das duas crianças loiras, tomada pelo espírito religioso do momento, perguntou onde realizava missas. Lorenzi, sorridente, disse carinhosamente que estava em Roma apenas por alguns dias e que trabalhava em Veneza. Encontro de estranhos, normais no meio de tanta gente, todos aguardando pela mesma coisa: a escolha de um líder por um grupo de homens tocados por Deus; tão simples, tão complexo e tão profundo. Um espírito que salta para a praça, para Roma e para o mundo.
Para Diego Lorenzi, era toda uma experiência pungente, que em breve terminaria. No dia seguinte, de manhã cedo, conduziria o Lancia em direcção a Veneza, seiscentos quilómetros de separação entre cidades e mundos. Então ouviu um Attenzione e viu o cardeal Pericle Felici aparecer na sacada da Basílica de São Pedro. Annuncio vobis gaudium magnum! Habemus papam! Cardinalem Albinum Luciani». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT