Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Eu me achava agora numa
situação realmente terrível e me arrependi de todo o coração por ter cedido ao
irmão mais velho com tanta facilidade, não por um exame de consciência, mas em vista
da felicidade de que poderia desfrutar e que agora se tornara impossível; como
disse, não tinha grandes escrúpulos de consciência, no entanto não podia pensar
em ser amante de um dos irmãos e esposa do outro, e então me ocorreu que o primeiro
irmão prometera fazer-me sua esposa quando entrasse na posse da sua herança;
daí a pouco voltei a pensar naquilo que por várias vezes já havia pensado, ou
seja: ele não me dissera mais uma palavra sobre casar-se comigo depois de me haver
conquistado como amante; e na verdade, até aquele momento, e embora tivesse
pensado no assunto várias vezes, como já disse, aquilo não havia me causado
nenhuma inquietação, já que ele não dava nenhum sinal de diminuir o seu afecto
por mim, como também não havia reduzido a sua generosidade; teve o cuidado de
me aconselhar a não gastar em roupas nem mesmo uma moedinha do que me dava, nem
fazer o menor gasto extraordinário, uma vez que causaria estranheza à família,
uma vez que todos sabiam que eu não poderia dar-me a esses luxos com os meus
ganhos correntes, mas somente por meio de uma amizade particular, o que logo
suscitaria desconfianças.
Não obstante, agora eu me via em
sérios apuros e não sabia como proceder, e a principal dificuldade estava em
que o irmão mais novo não só me assediava de perto como o fazia de forma que
todos notavam: entrava no quarto da mãe ou no das irmãs, sentava-se e dizia mil
coisas sobre mim, ou dizia-as a mim directamente, diante deles, se estávamos
juntos; a situação tornou-se tão pública que toda a casa falava daquilo, e a
mãe censurou-o, e a postura da família para comigo logo se alterou de forma
radical, a mãe deixando escapar certas frases, como se pretendesse fazer com
que eu largasse a família, ou, em termos claros, pôr-me no olho da rua, ora, eu
tinha certeza de que a situação era do conhecimento do irmão mais velho, sendo
possível apenas que ele não soubesse, como realmente ninguém mais sabia, que o
irmão mais novo me propusera casamento; todavia, como era fácil compreender que
a história chegaria mais longe, vi também que era absolutamente necessário que
eu falasse sobre aquilo com o irmão mais velho, ou que ele falasse comigo, não
sabia o que seria melhor, se eu deveria tomar a iniciativa ou deixar tudo como
estava até que ele viesse ter comigo.
Após prolongadas reflexões, pois
na verdade eu começava a pensar com muita seriedade na situação, como até então
não fizera, resolvi abordar a questão com ele primeiro, e não tardou para que
surgisse uma oportunidade, pois logo no dia seguinte o irmão mais novo foi a
Londres, por conta de algum negócio, e a família saiu para fazer visitas, e
ele, como já sucedera antes e, na verdade, como era seu hábito, veio passar uma
ou duas horas com a sra. Betty. Logo que entrou e sentou-se, percebeu com
clareza que meu semblante estava alterado e que eu não me portava com a desenvoltura
e a simpatia costumeiras; não tardou para que se desse conta de que eu havia
chorado, e me perguntou com palavras muito meigas o que acontecera e o que me
incomodava; se pudesse, eu teria postergado a explicação, mas não conseguia dissimular,
de modo que, depois de resistir por algum tempo a suas insistências para
desabafar aquilo que eu tanto ansiava revelar, confessei que de facto me
atormentava um facto cuja natureza não podia lhe ocultar, mas ao mesmo tempo não
sabia como dizer, que se tratava de algo que, além de me surpreender, deixara-me
sobremaneira perplexa, de forma que ignorava qual caminho seguir, a menos que
ele me aconselhasse; ele então me disse, com muita ternura, que, fosse o que
fosse, eu não devia permitir que aquilo me afligisse, pois ele me protegeria do
mundo inteiro». In Daniel Defoe, Moll Flanders, 1722, A Vida Amorosa de Moll Flanders,
Publicações Europa América, 1998, ISBN 978-972-104-443-2.
Cortesia
de PEAmérica/JDACT