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«(…) Um padre missionário
transportado por um batel perdido e a quem o escorbuto e a malaria emagreceram
como um abissínio sem poiso casara-os cinquenta e três anos antes, já na Guiné
que se limitava então a um amontoado de casas no estuário do rio, muitas delas
de madeira e de capim, com meninos e jacarés brincando com as mesmas rocas nos
mesmos berços de bordão, em torno do palácio do governo e de uma ermida sem
majestade. As jibóias engordavam na humidade dos lagos, e a senhora de luto que
lhes alugara o quarto levava o dia com um pé calçado e o outro descalço, de
botina de verniz no ar, achatando melgas nas paredes. Aos domingos, quando os
corpos se procuravam e tocavam nos lençóis musgosos de calor, o caminhar
desigual da dama no andar de baixo, entre centenas de pêndulos desencontrados,
e os estalos vingativos da sola nos muros de tijolo, acabavam por lhes
desanimar a vontade e os fazer sair para a rua, cegos de luz, a sentarem-se nos
bancos de uma praceta de mangueiras anãs, cujos troncos definhavam na névoa do
cacimbo. Ou vinham até ao cais, empurrados pela curiosidade tatuada dos
indígenas, assistir ao atracar sempre idêntico dos navios de emigrantes, gente
escura de Trás-os-Montes ou da Beira, céreos na morrinha cérea da tarde, que
desciam do convés na lentidão processional dos enterros. No decurso desses
cinquenta e três anos construíram-se mais umas dezenas de capelas imediatamente
em ruína, um bairro para os operários da fábrica de sonetos gongóricos e para
os cronistas desempregados que catavam cedilhas da barba, e um sistema de
esgotos eternamente entupido por embriões de sapos. A criatura dos mosquitos
finou-se da vesícula e os insectos passaram a circular em liberdade, apesar das
osgas, do esquentador avariado para a cantoneira da cozinha, de medalhão de
esmalte (meninas e faunos a almoçarem num prado) sob as garrafas de Porto. O
piso inferior foi primeiro ocupado por um vedor da fazenda, que negociava à
socapa das polícias do reyno em irmãos siameses e miudezas de estanho, a seguir
por um poeta de cabeleira empoada e sapatos de presilha e tacão alto que se
gabava de ter sido amigo do glorioso defunto Manoel Maria Barbosa Du Bocage, eu
que vi nascer nos botequins do Rossio os mais belos improvisos do meu tempo, e
depois, já na época da guerra, por oficiais roídos de febre intestinal que de
dois em dois anos mudavam de cara e de galões e regressavam da mata com um
fungo de pêlos nas bochechas, porque todos emagrecíamos na Guiné nessa época,
mesmo as araucárias, mesmo as ondas de alumínio do mar, mesmo o vento nos
algerozes dos prédios, reduzido a um pifarozinho cristalizado. A violência das
explosões dos morteiros, das bazookas e dos canhões sem recuo estremecia as
lagunas de Bissau, sobrepondo-se aos relâmpagos de Março. À noite grupos de
colonos de pistola percorriam as travessas amedrontando as sombras, as negras
apequenavam-se nas cubatas calando os filhos com os peitos chochos, e eles
nunca mais se sentaram aos domingos, inchados de desejo reprimido, no banco da
praceta das palmeiras: demoravam-se em camisa pelo quarto, desocupados, sem
destino, borbulhosos de melgas, a fitarem com desgosto o leito coxo ou a janela
para o cais onde em vez de colonos atracavam agora paquetes e caravelas de
soldados, com a mesma inocência espantada na infância dos olhos. Uma noite
escutaram por acaso na telefonia, num vendaval de assobios, a revolução de
Lixboa, notícias, comunicados, marchas militares, a prisão do governo, canções
desconhecidas, e no dia imediato a tropa parecia menos crispada, os
bombardeamentos rarearam, pretos de óculos flamejantes e camisas de feriado
instalaram-se nas esplanadas e nos largos no lugar dos brancos. Convocaram-nos
para uma reunião no Cine Theatro das zarzuelas estafadas e das récitas dos
bombeiros, onde um coronel de artilharia, com uma tripla fita de condecorações
na clavícula, subiu ao palco em cujo fosso a orquestra desafinou
entusiasticamente o hino, e lhes ofereceu de mão beijada, numa generosidade
inexplicável, a possibilidade gratuita de tornar a Portugal. Uma vizinha de
oiro nas cáries, divorciada de um agrimensor que media a palmo, de joelhos,
ribeiros e colinas, enganado nas contas pela quietude mineral dos crocodilos,
narrou em pormenor que haveria vinganças, fuzilamentos, tiroteios, buscas. Os
oficiais de tripas puídas debandaram do andar de baixo e tomaram o avião para a
Europa. Batalhões completos, convulsos de amibas e lombrigas, com os furriéis a
cabecearem de doença do sono logo após a charanga e a bandeira, alçavam-se para
navios ferrugentos carregando as suas armas e os seus mortos. Guerrilheiros
descalços, de camuflado, colares ao pescoço e bafo canibal de gato selvagem,
passeavam-se nas escadinhas da cidade chacinando mulatos à baioneta. Um negro
barbudo, autoritário, de cachimbo, que lhes não dava os bons-dias sequer, ocupou
o rés-do-chão protegido por uma matilha de antropófagos de boina, a cuspirem
sem cessar catarros prepotentes que assustavam no aparador o serviço de xícaras
com pagodes de Macau da senhoria defunta». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,
Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.
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