Cortesia de wikipedia
e jdact
«(…) Seguia-se a
cereja em cima do bolo a que se acedia por um pequeno túnel com as paredes
repletas de painéis brancos preenchidos com grafíti amorosos, na Via Cappello,
perto da Piazza delle Erbe. Matteo pedia a todos que parassem a meio do túnel e
distribuía algumas canetas de feltro. Estas paredes exibem rabiscos de amor,
explicava em tom jocoso. Declarem o vosso amor ao mundo, clamava num
incitamento à expressão amorosa, com os braços levantados no ar. Declarem o
vosso amor. As mulheres, primeiro, começavam a escrever com um brilho nos
olhos, no espaço disponível, que já era escasso. Quando terminavam entregavam a
caneta ao marido ou ao namorado para que também exprimissem o amor em toda a
sua essência. Outras limitavam-se a passá-la à próxima, à amiga ou à
desconhecida, enquanto olhavam para Matteo com um ar pecaminoso. Ele estava ciente
do efeito que provocava nelas. O dia já ia longo e a escolha dele já fora
feita. Bastava um olhar escrutinador, na primeira passagem que fazia pelo
corredor do autocarro, logo pela manhã, antes da partida para Castelvecchio,
para identificar a presa e iniciar um ataque velado que, a maior parte das
vezes, acabava à noite… na cama dele.
O solitário que repetia a visita
pela quarta vez não tirava os olhos dele enquanto ouvia as mesmas explicações
dos dias anteriores. Não era participativo, nunca escreveu nada nas paredes, e não
reagia às revelações exuberantes do guia. Estás a perder o teu tempo comigo, dizia Matteo
para si mesmo. A cama já
está ocupada logo à noite. Estes painéis são substituídos duas
vezes por ano, explicava o guia desfilando pelo grupo que enchia as paredes de
amor. Antes do dia 14 de Fevereiro, porque Verona enche-se de pessoas nessa
altura, e antes do dia 17 de Setembro, data do aniversário de Julieta. Depois
fazia uma pausa teatral como um actor prestes a revelar um segredo. Minhas
senhoras e meus senhores, dizia num tom sedutor. Sejam bem-vindos ao Palácio
dos Capuleti, a Casa de Julieta. O grupo apressava-se agora para um pequeno
pátio rodeado por fachadas de mármore vermelho, onde se via uma varanda em pedra.
Na fachada da casa, e em todos os locais onde fosse possível, centenas de
cartas dos mais variados géneros. Envelopes rosados, desenhos, papéis simples,
bilhetes, dos mais variados tamanhos e feitios, prendiam-se às pedras numa
corrente de desejos de amor. Amuletos, chaves, aloquetes, toda a espécie de bugigangas,
até pastilhas elásticas se colavam às paredes em forma de coração.
Matteo desaparecia então por
momentos, enquanto os turistas se acotovelavam no estreito pátio, admirando,
imaginando o que se passara ali entre Romeu e Julieta, séculos antes. Alguns minutos
depois davam pela falta dele. Onde está o Matteo? Onde se meteu o guia? O belo
italiano? Não seria a primeira vez que ele aproveitava o primeiro impacto e a
atmosfera mágica e romântica da casa para se esconder num qualquer local
obscuro, aos beijos sôfregos com a presa do dia, mas o efeito que procurava era
outro. Quando a simples curiosidade se começava a transformar em protesto, ele
reaparecia na varanda de pedra sob uma ovação generalizada.
Romeu! Romeu! Porque és tu, Romeu?
Renega o teu pai, muda de nome;
Se não queres fazê-lo, jura amar-me
E deixo eu de ser Capuleto.
O
silêncio espraiava-se pelo pátio com os turistas a olhar para ele. Máquinas
fotográficas, telemóveis e outras traquitanas digitais registavam o momento. O
solitário estava encostado à parede ao lado do túnel. O sol começava a
fraquejar, adornando o espaço com um tom alaranjado, misterioso. Renuncia a esse nome, Romeu, E em vez dele
que não faz parte da tua existência, Apodera-te de mim que sou tua. Um coro de aplausos seguia-se à
interpretação do guia. Era daqui que Julieta pronunciava estas palavras e Romeu
escutava-as daí debaixo, exactamente onde estão agora. Dava o tempo suficiente
para se beliscarem todos e abrandarem os sorrisos apaixonados, plenos de
imagens românticas. Omitia, claro, que, apesar de a casa ser muito antiga, a
varanda fora construída apenas em 1936 e não parecia haver qualquer relação entre
os Capuleti, Julieta e aquela residência. Ali vendia-se magia e não a verdade.
Nesta, ninguém estava interessado. E agora, anunciava ainda na varanda, vamos à
última paragem». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa,
Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.
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