quinta-feira, 27 de junho de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «O solitário que repetia a visita pela quarta vez não tirava os olhos dele enquanto ouvia as mesmas explicações dos dias anteriores. Não era participativo, nunca escreveu nada nas paredes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Seguia-se a cereja em cima do bolo a que se acedia por um pequeno túnel com as paredes repletas de painéis brancos preenchidos com grafíti amorosos, na Via Cappello, perto da Piazza delle Erbe. Matteo pedia a todos que parassem a meio do túnel e distribuía algumas canetas de feltro. Estas paredes exibem rabiscos de amor, explicava em tom jocoso. Declarem o vosso amor ao mundo, clamava num incitamento à expressão amorosa, com os braços levantados no ar. Declarem o vosso amor. As mulheres, primeiro, começavam a escrever com um brilho nos olhos, no espaço disponível, que já era escasso. Quando terminavam entregavam a caneta ao marido ou ao namorado para que também exprimissem o amor em toda a sua essência. Outras limitavam-se a passá-la à próxima, à amiga ou à desconhecida, enquanto olhavam para Matteo com um ar pecaminoso. Ele estava ciente do efeito que provocava nelas. O dia já ia longo e a escolha dele já fora feita. Bastava um olhar escrutinador, na primeira passagem que fazia pelo corredor do autocarro, logo pela manhã, antes da partida para Castelvecchio, para identificar a presa e iniciar um ataque velado que, a maior parte das vezes, acabava à noite… na cama dele.
O solitário que repetia a visita pela quarta vez não tirava os olhos dele enquanto ouvia as mesmas explicações dos dias anteriores. Não era participativo, nunca escreveu nada nas paredes, e não reagia às revelações exuberantes do guia. Estás a perder o teu tempo comigo, dizia Matteo para si mesmo. A cama já está ocupada logo à noite. Estes painéis são substituídos duas vezes por ano, explicava o guia desfilando pelo grupo que enchia as paredes de amor. Antes do dia 14 de Fevereiro, porque Verona enche-se de pessoas nessa altura, e antes do dia 17 de Setembro, data do aniversário de Julieta. Depois fazia uma pausa teatral como um actor prestes a revelar um segredo. Minhas senhoras e meus senhores, dizia num tom sedutor. Sejam bem-vindos ao Palácio dos Capuleti, a Casa de Julieta. O grupo apressava-se agora para um pequeno pátio rodeado por fachadas de mármore vermelho, onde se via uma varanda em pedra. Na fachada da casa, e em todos os locais onde fosse possível, centenas de cartas dos mais variados géneros. Envelopes rosados, desenhos, papéis simples, bilhetes, dos mais variados tamanhos e feitios, prendiam-se às pedras numa corrente de desejos de amor. Amuletos, chaves, aloquetes, toda a espécie de bugigangas, até pastilhas elásticas se colavam às paredes em forma de coração.
Matteo desaparecia então por momentos, enquanto os turistas se acotovelavam no estreito pátio, admirando, imaginando o que se passara ali entre Romeu e Julieta, séculos antes. Alguns minutos depois davam pela falta dele. Onde está o Matteo? Onde se meteu o guia? O belo italiano? Não seria a primeira vez que ele aproveitava o primeiro impacto e a atmosfera mágica e romântica da casa para se esconder num qualquer local obscuro, aos beijos sôfregos com a presa do dia, mas o efeito que procurava era outro. Quando a simples curiosidade se começava a transformar em protesto, ele reaparecia na varanda de pedra sob uma ovação generalizada.

Romeu! Romeu! Porque és tu, Romeu?
Renega o teu pai, muda de nome;
Se não queres fazê-lo, jura amar-me
E deixo eu de ser Capuleto.

O silêncio espraiava-se pelo pátio com os turistas a olhar para ele. Máquinas fotográficas, telemóveis e outras traquitanas digitais registavam o momento. O solitário estava encostado à parede ao lado do túnel. O sol começava a fraquejar, adornando o espaço com um tom alaranjado, misterioso. Renuncia a esse nome, Romeu, E em vez dele que não faz parte da tua existência, Apodera-te de mim que sou tua. Um coro de aplausos seguia-se à interpretação do guia. Era daqui que Julieta pronunciava estas palavras e Romeu escutava-as daí debaixo, exactamente onde estão agora. Dava o tempo suficiente para se beliscarem todos e abrandarem os sorrisos apaixonados, plenos de imagens românticas. Omitia, claro, que, apesar de a casa ser muito antiga, a varanda fora construída apenas em 1936 e não parecia haver qualquer relação entre os Capuleti, Julieta e aquela residência. Ali vendia-se magia e não a verdade. Nesta, ninguém estava interessado. E agora, anunciava ainda na varanda, vamos à última paragem». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT