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Jerusalém
«(…) Prosseguiu no trilho
histórico, pejado de casas e lojas, deixando a multidão dos crentes seguir o
resto da História lá para trás, na Via Dolorosa, passando, sem deitar um segundo
olhar, à primeira estação da Cruz, no Mosteiro da Flagelação, onde o Cristo foi
condenado e barbaramente torturado pelos legionários a soldo de Pôncio Pilatos.
Um pouco mais adiante, o homem cortou à esquerda, na Qadisieh, repleta de casas
baixas e portas fechadas. Bateu na terceira, do lado esquerdo. Ali teria de
perguntar pela direcção. Quem abriu foi uma mulher de tez escura, não lhe
escapou a cor, apesar do pouco que as vestes deixavam entrever. Assim manda a
tradição muçulmana, que as mulheres nada mostrem, pois o homem não pode ser
tentado pela carne da fêmea e, se o for, a culpa é, naturalmente, dela. Perdoe-me
a intromissão, escusou-se. Terá a gentileza de me informar onde fica a casa de
Abu Rashid? A reacção da mulher foi um intempestivo bater com a porta,
deixando-o especado a olhar a madeira lascada pelos anos. Das duas, uma, ou é
esta a casa de Abu Rashid ou não.
Quando estava prestes a desistir
e tentar outra porta, ouviu passos pesados, provindos do interior da casa, a
aproximarem-se da entrada. O ranger dos gonzos revelou um homem robusto com
barba e bigode grisalhos, túnica da cor do vinho tinto a cair-lhe sobre o
corpo, marcas da sempre honrosa tradição. Boa tarde, cumprimentou o estrangeiro.
Saberá dizer-me onde fica a casa de… Sim, sim…, resmungou o velho barbudo,
impaciente, inundando o ar com perdigotos. Fitou o estrangeiro de fato negro,
avaliou a meia-idade e virou costas, deixando a porta aberta. Deixa os sapatos à
entrada. Não levou muito tempo a acatar as ordens do proprietário e descalçou-se.
Sentia-se um pouco suado e a precisar de um banho, mas não ia virar costas ao
trabalho só por se sentir desconfortável. O seu bem-estar estava muito abaixo
na lista de prioridades. Entrou na casa de forma respeitosa, desde muito cedo
aprendera que reverenciar os outros traz benefícios a curto, médio e longo
prazo. A luz penetrava livremente pelo topo da casa que, à excepção da porta
que voltava a estar fechada, deixava o ar entrar e arejar o corredor e as divisões.
Sentiu vários olhares femininos sobre a sua nuca, apesar de não os conseguir
ver. Perscrutou alguns risinhos tímidos por detrás das cortinas.
Quedou-se a meio do corredor. Não
queria ser indelicado e entrar onde não devia. Aguardou um sinal do velho, que
chegou em forma de convite. Shai?, ouviu perguntar de uma antecâmara mais ao
fundo do iluminado espaço. Encaminhou-se nessa direcção e deu com ele sentado
num cadeirão de baloiço, a fumar um cigarro. Uma mulher descoberta abana um
leque ao seu lado, afugentando o calor repentino do final da tarde e secando
com um lenço de tecido as gotículas de exsudação que teimam em formar-se na
testa dele. Porventura, a sua esposa ou uma delas. Sim, aceito, respondeu o
estrangeiro. Obrigado. Um leve gesto para a jovem mulher, e esta saiu
esbaforida para cumprir o mandado, deixando a canícula apoderar-se do seu lindo
marido.
E cobre essa cabeça, gritou o homem na entoação certa para que
a ordem fosse ouvida. Temos visitas. O estrangeiro fitou-o durante alguns
segundos, com a preocupação de não se mostrar inconveniente, contudo, o velho
muçulmano rodeava-se de uma aura de mistério tão cativante que dificultava
qualquer movimento». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de
Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN
978-989-813-400-4.
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