quarta-feira, 19 de junho de 2019

O Delfim. José Cardoso Pires. «Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo: Visto da janela onde me encontro, é um terreiro nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia, é facto, grande de mais. E inútil, dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela. À tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. Tão escura, observe-se, tão carregada de hora para hora, que parece uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só, deixando-o entregue aos vermes que o minam.
Assim, o enorme paredão figura mais como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto, num certo sentido. Porque para quem conheça a aldeia (consulte-se a citada Monografia do Termo da Gafeira, do abade Agostinho Saraiva, MDCCCI) é ali que está o pórtico do povoado, o mastro, segundo ele, dumas gloriosas termas romanas mandadas construir por Octavius Theophilus, Pai da Pátria. Lá se pode ler, na pedra imperial (e na gravura que abre o livro), o mandato solene gravado a todos os ventos: ISIDI DOMIN – M. OCT. LIB THEOPHILVS.
A muralha, como lápide de uma vasta e destroçada campa com vinte séculos de abandono. Ou simplesmente como cabeça do largo. E, crucificada nela e na sua legenda de caracteres ibéricos, digo, lusitanos, a igreja. Depois temos buracos e terra esquecida até à estrada de alcatrão, temos tabernas e comércio sonolento e, a fechar o traçado, uma fila de casas a cada margem, muitas delas vazias e ainda com as argolas onde antigamente se prendiam as bestas. Antigamente, em tempos mais felizes. Antigamente, cinquenta, setenta anos atrás, o terreiro foi com certeza uma praça de feira, porque não? Um arraial. Um encontro de marchantes, com almocreves e mercadores de sardinha vindos de longe atrás das muares. Haveria barbeiros tosquiando ao sol e mendigos de chaga e alforje; tabuleiros com arrufadas; galinheiras de guarda aos seus pequeninos cestos de ovos, acocoradas debaixo de largas sombrinhas (visto não existirem árvores); não faltaria sequer o capador em visita, cavalgando uma égua tristemente guedelhuda... Tudo isto devidamente emoldurado por uma correnteza de mulas e de jumentos presos às argolas das paredes enquanto os donos se perdiam pelas tabernas». In José Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª edição, Moraes Editores, Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom Quixote, 1988, 2003, ISBN 972-201-654-7.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT