segunda-feira, 24 de junho de 2019

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «… as esporas são desnecessárias, hein, Jaloque?, sussurrou o jovem ao ouvido do animal, acariciando-lhe a crina. Parece mesmo impaciente para galopar»

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«(…) Essas manchas no rosto... A respiração irregular... O que você tem? Nada de grave, assegurou-lhe Galib, apoiando-se à parede. Apenas uma leve indisposição. Na minha idade... Tentou sorrir. Depois que o velho se recuperou um pouco, Willalme se aproximou de Uberto e estendeu-lhe a mão. Faça boa viagem, amigo. E, com um gesto ao mesmo tempo inesperado e tímido, entregou-lhe seu punhal árabe. Poderá ser-lhe útil. O jovem observou o objecto revestido na sua bainha de marfim. Mas é a sua jambiya! Não posso aceitar um presente desses... O francês colocou a arma nas mãos de Uberto, forçando-o a segurá-la. Não insista, detesto rodeios. Você a devolverá no nosso próximo encontro. O mercador lançou um último olhar ao vacilante Galib e em seguida abraçou o filho. Esse gesto simples, embora movido por sentimentos sinceros, foi difícil para ele. Manifestar afecto sempre lhe custava esforço e constrangimento.
Uberto se desvencilhou. Pai, deixe disso, eu tinha 15 anos quando você me abraçou pela última vez. Fique atento, filho, recomendou Ignazio. Se lhe acontecer alguma coisa, eu não me perdoarei jamais. Não se preocupe, serei rápido e cuidadoso. Nós nos veremos em Toulouse. É provável que eu já esteja lá quando chegarem. Se não, esperem-me ou deixem recado dizendo o lugar onde poderei encontrá-los. O mercador assentiu. Se houver algum contratempo, deixarei uma mensagem na hospedaria da catedral. Não me esquecerei. Galib interveio impaciente: é hora de partir. Depois de uma derradeira saudação, Uberto pôs o alforje ao ombro e saiu do quarto atrás do magister.
O velho e o rapaz deixaram o torreão, passando em silêncio pelos postos de guarda, até chegarem ao pátio, de onde puderam avançar em segurança protegidos pelas sombras da vegetação. Galib caminhava com dificuldade crescente e mais de uma vez Uberto se prontificou a ampará-lo, mas, vendo que o ancião recusava sua ajuda, desistiu. No espaço de poucas horas, mudara repetidamente de opinião sobre ele. Como quase sempre lhe acontecia quando em presença de eruditos ou cortesãos, não conseguira compreendê-lo de início. Primeiro, julgara-o uma pessoa ambiciosa, empenhada em obter as boas graças do rei e em fomentar intrigas; depois, à mesa, achara-o medroso e inseguro, mas por fim soubera apreciar sua inteligência e o afecto sincero que dedicava a Ignazio. Só agora fazia uma ideia precisa do ancião: Galib era obstinado e orgulhoso, não tímido, mas previdente, e, sobretudo, estava decidido a agir em prol do bem comum. Porém, Uberto desconfiava que estivesse escondendo alguma coisa.
A silhueta do velho continuava avançando sobre a relva, cambaleando como um soldado ferido. Não estava encenando nada nem se entregando a um capricho de sábio entediado: aquela era uma missão que ele queria ver cumprida a todo custo. Por isso, e pela dignidade de sua atitude, o jovem confiava nele e resolvera ajudá-lo sem pedir muitas explicações. Depois de percorrer um breve trecho, chegaram a uma pequena construção de pedra e argila. O magister se apoiou no portal, olhando em volta. Entre depressa, disse. Uberto entrou e logo sentiu o cheiro de feno e esterco. A luz do luar penetrava pelas fendas das paredes iluminando o recinto, onde se viam equipamentos de estrebaria, caça, guerra e desfile. O velho atravessou o recinto ordenando: siga-me. Depois de passarem por uma espécie de antecâmara, chegaram ao interior de uma cavalariça. E, pela primeira vez desde que tinham saído do torreão, Galib se virou para o jovem com um olhar de cumplicidade e disse: gosta de cavalos? Oh, sim, respondeu Uberto. O magister aproximou-se de um magnífico garanhão já selado, acariciou-lhe a crina e verificou se as rédeas e os arreios estavam bem firmes.
Com este V.viajará rápido. Era um cavalo de raça. Não um daqueles ginetes turcomanos enormes, importados da Espanha, capazes de suportar o peso de guerreiros encouraçados; lembrava antes um corcel árabe, embora tivesse o porte mais imponente e pernas mais robustas. Um esplêndido exemplar, admitiu Uberto. Galib sorriu com orgulho. Seu nome é Jaloque, derivado do árabe šaláwq, vento do mar. Ganhei-o do califa al-Mamun, senhor do Magrebe, em troca de alguns tratados astrológicos. Os arqueiros berberes cavalgam em animais dessa mesma raça... Agora é seu. O jovem se inclinou, agradecendo, e aproximou-se do cavalo. Acariciou-lhe o focinho e o pescoço e só então notou que havia um arco de caça preso ao arção posterior.
Mera precaução, explicou Galib, entregando-lhe uma aljava. Poderá ser útil. Uberto concordou com um aceno de cabeça. Prendeu a aljava ao flanco direito, pôs um pé no estribo e alçou-se à sela. O corcel bateu com as patas no chão por alguns instantes, depois ergueu a cabeça e bufou. Com você, as esporas são desnecessárias, hein, Jaloque?, sussurrou o jovem ao ouvido do animal, acariciando-lhe a crina. Parece mesmo impaciente para galopar». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT