quarta-feira, 12 de junho de 2019

As Naus. António Lobo Antunes. «… o carrapito com uma multidão de ganchos. De modo que a avisou, mergulhando num púcaro a bolsinha do chá para o fim do almoço, daqui a doze dias temos navio para a Europa»

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«(…) Corrida uma semana voltaram a convocá-los para o Cine Theatro e garantiram-lhes passagens para o reyno depois de horas de explicações confusas, no decurso das quais três majores em uniforme de combate, postados atrás de uma mesa com o escudo da nação, berraram discursos veementes acerca do fascismo que nos matou ao sol de frigideira do campo de concentração do Tarrafal, da censura eclesiástica da polícia que degolou tantas das nossas obras-primas nas tipografias mais recônditas, do colonialismo que até o Papa condenou no discurso de encerramento do Sétimo Congresso Dos Esperantistas Cristãos com as palavras consternadas da nossa preocupação apostólica. A divorciada do agrimensor jurou-lhes que os pretos, irritados pelos estabelecimentos vazios, coziam a lume brando, em fogões de campanha, as crianças da cidade. O sabão e o tabaco deram em faltar nas mercearias de forma que fumavam folhas de amoreira e páginas de herbário, e raspavam com lixa de bate-chapas a fuligem dos dedos. As naus aportavam vazias e partiam cheias, convexas de gente e de caixotes. Bissau despovoava-se de brancos e o início da estação das chuvas encontrou-os sem saber o que fazer numa terra de selvagens triunfais que estilhaçavam à metralhadora os postigos das fachadas. A do agrimensor, na altura ocupado a calcular em polegadas a fronteira da Costa do Marfim, deixou de procurá-los com os seus avisos de cozeduras e vinganças, e vieram a saber que se amancebara com um guerrilheiro pintalgado de Bolama, repartida com mais duas fulas numa cubata malcheirosa, a tramar castrações e garrotes. Um amigo da fábrica de sonetos gongóricos, chamado Jerónimo Baía, descreveu-lhes acontecimentos medonhos, sodomias, envenenamentos, rimas cruzadas, récuas de prisioneiros de algemas enxotados à coronhada para o mato. E quando o chá acabou e mergulhavam diariamente na água fervida o mesmo saquito sem sabor dependurado na extremidade de uma guita, a esposa, de costas para ele, anunciou-lhe na serena voz habitual com que enterrara, trinta e oito anos antes, a filha criança, Já não pertenço aqui.
O marido olhou pela janela as lagunas de enguias de Bissau, o estuário deserto de pesqueiros, os telhados em que cantavam as guitarras sem cordas dos trovões, e viu reflectido no vidro um velho que demorou a reconhecer porque apenas se confrontava no espelho para a barba sumária dos sábados e prestava mais atenção aos lenhos do queixo do que à calva, às rugas e outras marcas e devastações do tempo, esticando a pele de iguana do pescoço com os beliscos dos dedos. A crueldade dos anos magoou-o como um castigo injusto e ao voltar-se para encarar a mulher, sugando das gengivas uma remota saudade de chá, indignou-se de novo ao verificar, espantado, a erosão sem cura que o tempo provocara nela também, avariando-lhe as pernas de um mármore de varizes, aumentando-lhe as pálpebras, dissolvendo a cintura, e admitiu com desgosto que já não pertencemos nem sequer a nós, este país comeu-nos as gorduras e a carne sem piedade nem proveito uma vez que se achavam tão pobres como haviam chegado. Nessa mesma tarde subiu aos damascos rotos e óleos de defensores do reyno do palácio do governo, esperou numa enorme cadeira de dignitário, no meio de dezenas de brancos e mulatos, que lhe pronunciassem o nome e um funcionário de jaqueta e punhal o recebesse na cave do edifício, atulhada de flippers e de mesas de bilhar desfeitas, e pediu, ao cabo de um silêncio difícil, dois lugares de porão para Lixboa. Ao entrar no quarto a mulher, instalada na ponta da cama, consertava o carrapito com uma multidão de ganchos. De modo que a avisou, mergulhando num púcaro a bolsinha do chá para o fim do almoço, daqui a doze dias temos navio para a Europa.
No decurso desse período choveu sem parar um temporal que harpejava cravo no telhado das gelosias. O vento desordenava os galhos das mangueiras desorientando o azimute dos pássaros, e os derradeiros soldados partiam curvados sob as guinadas da água. Pólipos e cogumelos minúsculos rebentavam nas pregas dos lençóis, nos chinelos esquecidos, na trança das lâmpadas, na fotografia muito antiga de um casal de noivos contra uma paisagem de abetos: nós dois, eu de sobrecasaca e tu de véu, há tantos anos que não se distinguiam os rostos, ainda que me lembrasse do bigode do fotógrafo a desaparecer nos panos da quina e da mão de afogado, de anel de pedra vermelha no indicador, que acenava aflitivamente para nós que pelo amor de Deus não se mexam agora, olha o passarinho, já está, e eles embaraçadíssimos diante daquele bicho estranho, assente em três patas junto ao balde de zinco do revelador. Se os brancos diminuíam, os pretos, em compensação, aumentavam nas casas atoladas nos caniços dos rios. Ocupavam as casernas que a tropa deixara, aliviada do peso da guerra, e enfeitadas de frases bélicas e de gravuras de mulheres de ligas, de pescoços opalinos como abajures arte-nova; acomodavam-se nos bancos de jardim, indiferentes à chuva, com as automáticas checoslovacas nos joelhos, caçando cães para o almoço; postavam-se de sentinela nas esquinas, a beber permanganato de garrafões de botica; entravam e saíam nos cretones do palácio do governo, pisando com desdém as lajes do poder. Os escarros dos antropófagos do barbudo assobiavam raivas e ordens no piso inferior, exactamente por baixo das nossas nucas deitadas, e a mulher disse não pertenço aqui num sussurro que provinha do interior da sua desilusão e da sua miséria, e repetiu baixinho Não pertenço aqui na exacta voz da noiva do retrato». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT