terça-feira, 25 de junho de 2019

De Amor e de Sombra. Isabel Allende. «A hera perene sobrevivera às últimas geadas, as telhas brilhavam ainda com o orvalho da noite, e o pavilhão dos hóspedes, com os seus artesoados e postigos de madeira, luzia desbotado e triste»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O primeiro dia de sol evaporou a humidade acumulada na terra durante o Inverno e aqueceu os frágeis ossos dos anciãos, que, assim, puderam passear pelos caminhos ortopédicos do jardim. Apenas o melancólico permaneceu na cama, porque era inútil levá-lo para o ar puro: os seus olhos só viam os próprios pesadelos e os ouvidos estavam surdos ao alvoroço dos pássaros. Josefina Bianchi, a actriz, vestida com o longo traje de seda que usara meio século antes para declamar Tchekov e levando consigo uma sombrinha para proteger a pele de porcelana trincada, caminhava devagar entre os canteiros que em pouco tempo se cobririam de flores e besouros. Pobres rapazes, sorriu a octogenária ao perceber um ligeiro movimento nos miosótis, adivinhando assim a presença dos seus admiradores, aqueles que a amavam no anonimato e se escondiam na vegetação, para a espreitar quando passava.
O coronel deu uns passinhos miúdos, apoiado na cerca de alumínio que servia de suporte às suas pernas de algodão. Para festejar a Primavera que nascia e saudar a bandeira nacional, como fazia, sem falta, todas as manhãs, pusera no peito as medalhas de papelão e lata fabricadas para ele por Irene. Quando a agitação dos pulmões lho permitia, bradava ordens à tropa e mandava que os trémulos bisavôs se afastassem do Campo de Marte, onde a infantaria podia esmagá-los com o seu garboso passo de desfile e as botas envernizadas. A bandeira ondulou ao ar como uma invisível ave de rapina junto ao fio dos telefones e os seus soldados perfilaram-se direitos, olhando em frente, enquanto os tambores rufavam e vozes viris entoavam o sagrado hino que só os seus ouvidos escutavam. Foi interrompido por uma enfermeira em uniforme de batalha, silenciosa e dissimulada como em geral são essas mulheres, munida de um guardanapo para limpar-lhe a baba que corria pelas comissuras dos lábios e lhe molhava a camisa. Tentou oferecer-lhe uma condecoração ou uma promoção, mas ela deu meia volta e deixou-o depois de o ter, com o gesto suspenso, avisado de que, se emporcalhasse as calças, lhe daria três palmadas, porque estava farta de limpar porcaria alheia. De quem fala esta insensata?, perguntou-se o coronel, deduzindo que, sem dúvida, a enfermeira se referia à mais rica viúva do reino.
Só ela usava cueiros no acampamento, devido a uma ferida de canhão que lhe deu cabo do sistema digestivo e a meteu para sempre numa cadeira de rodas, mas nem mesmo por isso era respeitada. Quando menos esperava, roubavam-lhe os ganchos e as fitas, pois o mundo está cheio de velhacos e trapaceiros. Ladrões! Roubaram-me os chinelos!, gritou a viúva. Cale-se, avó, os vizinhos podem ouvi-la, ordenou-lhe a enfermeira, movendo a cadeira para que ela ficasse ao sol. A inválida continuou a vociferar acusações até ficar sem ar e teve que se calar para não morrer, mas mesmo assim restaram-lhe forças para indicar com um dedo artrítico o sátiro que, às escondidas, abria a braguilha para mostrar o seu pénis deplorável às senhoras. Nenhuma delas se preocupava com o facto, a não ser uma pequena dama vestida de luto, que observava aquele figo seco com certa ternura.
Estava apaixonada pelo seu dono e, à noite, deixava a porta do seu aposento aberta para que ele tomasse uma resolução. Rameira!, resmungou a viúva abastada, mas não sem evitar um sorriso, porque, de repente, lembrou-se de tempos idos quando ainda tinha marido e este pagava com patacões de ouro o privilégio de ser recebido entre as suas largas coxas, o que acontecia com bastante frequência. Chegou a ter uma bolsa cheia, tão pesada que nenhum marinheiro podia carregá-la aos ombros. Onde é que estão as minhas moedas de ouro? De que está falando, avó?, respondeu distraída a empregada atrás da cadeira de rodas. Roubaste-mas! Vou chamar a polícia! Não me chateie, velha, respondeu a outra sem se alterar.
Tinham ajeitado o paralítico num banco, com as pernas agasalhadas com um xaile, sereno e digno apesar do seu rosto meio deformado, a mão inútil no bolso e um cachimbo vazio na outra, com uma jaqueta de uma elegância britânica, apesar de remendada com couro nos cotovelos. Esperava correspondência, por isso exigiu que o sentassem de frente para o portão, para ver Irene entrar e saber, ao primeiro olhar, se trazia carta para ele. Ao seu lado apanhava sol, um velho triste com quem não falava porque eram inimigos, embora ambos tivessem esquecido o motivo da discórdia. Por engano, às vezes dirigiam-se a palavra sem obter resposta, mais por surdez do que por hostilidade.
Na sacada do segundo andar, onde o amor-perfeito ainda não dera folhas nem flores, apareceu Beatriz Alcántara Beltrán. Vestia calças de camurça verde-escuras e blusa francesa do mesmo tom, combinando com a sombra das pálpebras e o anel de malaquite, maquilhada logo de manhã, fresca e tranquila depois de uma sessão de exercícios orientais para relaxar tensões e esquecer os sonhos da noite, segurando um copo de sumo para melhorar a digestão e limpar a pele. Respirou profundamente, notando a nova brandura do ar, e contou os dias que faltavam para a viagem de férias. O Inverno fora muito rigoroso e por isso perdera o bronzeado. Observou compenetrada o jardim aos seus pés, embelezado pelo despontar da Primavera, mas ignorou a luz nas pedras do muro e a fragância da terra molhada. A hera perene sobrevivera às últimas geadas, as telhas brilhavam ainda com o orvalho da noite, e o pavilhão dos hóspedes, com os seus artesoados e postigos de madeira, luzia desbotado e triste». In Isabel Allende, De Amor e de Sombra, 1984, Porto Editora, ISBN 978-972-004-247-7.

Cortesia de PortoE/JDACT