quarta-feira, 12 de junho de 2019

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Na messe de oficiais do Luso, espécie de Bairro da Madre de Deus de ruas geométricas e casas económicas plantado no planalto dos Bundas, no espírito Portugal dos Pequeninos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) De tempos a tempos, no entanto, Portugal reaparecia sob a forma de pequenas povoações à beira da estrada, nas quais raros brancos translúcidos de paludismo tentavam desesperadamente recriar Moscavides perdidas, colando andorinhas de loiça nos intervalos das janelas ou pendurando lanternas de ferro forjado nos alpendres das portas: quem levou séculos a semear igrejas acaba inevitavelmente, por reflexo, a colocar jarras de flores de plástico no tampo dos frigoríficos, do mesmo modo que Tolstoi, agonizante, movia os dedos cegos no lençol repetindo o acto de escrever, com a diferença de as nossas frases se resumirem a boas-vindas de azulejo e a palavras de acolhimento desbotado no capacho da entrada. Até que ao fim da tarde, um fim de tarde sem crepúsculo, com a noite a suceder-se abruptamente ao dia, chegamos a Nova Lisboa, cidade ferroviária no planalto, de que guardo uma confusa lembrança de cafés provincianos e de montras poeirentas, e do restaurante onde jantamos, de espingarda entre os joelhos, obsevados por mulatos de óculos escuros parados diante de cervejas imemoriais, cujas feições imóveis possuíam a consistência opaca das cicatrizes; durante todo o bife senti-me como que no prefácio do massacre de S. Valentim, prestes a tiroteios de Lei Seca, e levava o garfo à boca no aborrecimento mole de Al Capone, compondo nos espelhos sorrisos de crueldade manifesta; ainda hoje, sabe, saio do cinema a acender o cigarro à maneira de Humphrey Bogart, até que a visão da minha imagem num vidro me desiluda: em vez de caminhar para os braços de Lauren Bacall dirijo-me de facto para a Picheleira, e a ilusão desaba no fragor lancinante de um mito desfeito. Meto a chave à porta (Humphrey Bogart ou eu?), hesito, entro, olho a gravura do vestíbulo (já definitivamente eu a olhá-la) e afundo-me no sofá no suspiro de pneu que se esvazia de uma Gata Borralheira ao contrário. Como quando sair daqui, percebe, ao ter acabado de lhe contar esta história esquisita e de ter bebido, em vagares de camelo, todas as garrafas visíveis, e me achar lá fora, ao frio, longe do seu silêncio e do seu sorriso, sozinho como um órfão, de mãos nos bolsos, a assistir ao nascer da manhã numa angústia cremosa que a lividez das árvores macabramente sublinha. As madrugadas, de resto, são o meu tormento, gordurosas, geladas, azedas, repletas de amargura e de rancor. Nada vive ainda e, todavia, uma ameaça indefinível ganha corpo, aproxima-se, persegue-nos, incha-nos no peito, impede-nos de respirar livremente, as pregas do travesseiro petrificam-se, os móveis, agudos, hostilizam-nos. As plantas dos vasos avançam para nós tentáculos sequiosos, do outro lado dos espelhos objectos canhotos recusam-se aos dedos que lhes damos, os chinelos sumiram-se, o roupão não existe, e no interior de nós, teimoso, insistente, dolorosamente lento, caminha este comboio que atravessa Angola, de Nova Lisboa ao Luso, a transbordar de homens fardados que cabeceiam contra as janelas à procura de um sono impossível.
Conhece o general Machado? Não, não se franza, não procure, ninguém conhece o general Machado, cem em cada cem portugueses nunca ouviram falar do general Machado, o planeta gira apesar desta ignorância do general Machado, e eu pessoalmente odeio-o. Era o pai da minha avó materna, a qual, aos domingos, antes do almoço, me apontava com orgulho a fotografia de uma espécie de bombeiro antipático de bigodes, dono de numerosas medalhas que tronavam no armário de vidro da sala juntamente com outros troféus guerreiros igualmente inúteis, mas a que a família parecia prestar uma veneração de relíquias. Pois fique sabendo que durante anos, aborrecido e pasmado, escutei semanalmente, em folhetins narrados pela voz emocionada da avó, as proezas vetustas do bombeiro elevadas na circunstância a cumes de epopeia: o general Machado envenenou-me anos e anos o bife introduzindo na carne o mofo indigesto de uma dignidade hirta, cuja rigidez vitoriana me enjoava. E foi precisamente esta criatura nefasta, de que as órbitas globulosas de prefeito ou de cura me reprovaram da parede, recusando-me mesmo a absolvição dúbia que paira como um halo nos sorrisos amarelos dos retratos antigos, que construiu, ou dirigiu a construção, ou concebeu a construção, ou concebeu e dirigiu a construção do caminho de ferro em que seguíamos, de rebenta-minas na dianteira, chocalhando numa planície sem princípio nem termo, mastigando as conservas da ração de combate num desapetite em que morava já o medo pânico da morte, que durante vinte e sete meses cresceu na humidade das minhas tripas os seus cogumelos esverdeados. Na messe de oficiais do Luso, espécie de Bairro da Madre de Deus de ruas geométricas e casas económicas plantado no planalto dos Bundas, no espírito Portugal dos Pequeninos corporativo que fez do Estado Novo uma constante aberração por defeito ou por excesso, vi, pela primeira vez em muito tempo, cortinas, cálices, mulheres brancas e tapetes: a pouco e pouco aquilo a que durante tantos anos me habituara afastava-se de mim, família, conforto, sossego, o próprio prazer das maçadas sem perigo, das melancolias mansas tão agradáveis quando nada nos falta, do tédio à António Nobre nascido da crença convicta de uma superioridade ilusória. Por exemplo, a tristeza depois do jantar substituía as palavras cruzadas do jornal, e entretinha-me a preencher os quadradinhos em branco de trabalhosas elucubrações oscilando entre o idiota chapado e o vulgar profundo, limites aliás entre os quais o pensamento lusitano se condensa, equivalentes metafísicos dos versos dos cravos de papel». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT