Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) De tempos a tempos, no
entanto, Portugal reaparecia sob a forma de pequenas povoações à beira da
estrada, nas quais raros brancos translúcidos de paludismo tentavam
desesperadamente recriar Moscavides perdidas, colando andorinhas de loiça nos
intervalos das janelas ou pendurando lanternas de ferro forjado nos alpendres
das portas: quem levou séculos a semear igrejas acaba inevitavelmente, por
reflexo, a colocar jarras de flores de plástico no tampo dos frigoríficos, do
mesmo modo que Tolstoi, agonizante, movia os dedos cegos no lençol repetindo o
acto de escrever, com a diferença de as nossas frases se resumirem a
boas-vindas de azulejo e a palavras de acolhimento desbotado no capacho da
entrada. Até que ao fim da tarde, um fim de tarde sem crepúsculo, com a noite a
suceder-se abruptamente ao dia, chegamos a Nova Lisboa, cidade ferroviária no
planalto, de que guardo uma confusa lembrança de cafés provincianos e de
montras poeirentas, e do restaurante onde jantamos, de espingarda entre os
joelhos, obsevados por mulatos de óculos escuros parados diante de cervejas imemoriais,
cujas feições imóveis possuíam a consistência opaca das cicatrizes; durante todo
o bife senti-me como que no prefácio do massacre de S. Valentim, prestes a tiroteios
de Lei Seca, e levava o garfo à boca no aborrecimento mole de Al Capone, compondo
nos espelhos sorrisos de crueldade manifesta; ainda hoje, sabe, saio do cinema
a acender o cigarro à maneira de Humphrey Bogart, até que a visão da minha imagem
num vidro me desiluda: em vez de caminhar para os braços de Lauren Bacall dirijo-me
de facto para a Picheleira, e a ilusão desaba no fragor lancinante de um mito desfeito.
Meto a chave à porta (Humphrey Bogart ou eu?), hesito, entro, olho a gravura do
vestíbulo (já definitivamente eu a olhá-la) e afundo-me no sofá no suspiro de
pneu que se esvazia de uma Gata
Borralheira ao contrário. Como quando sair daqui, percebe, ao
ter acabado de lhe contar esta história esquisita e de ter bebido, em vagares
de camelo, todas as garrafas visíveis, e me achar lá fora, ao frio, longe do
seu silêncio e do seu sorriso, sozinho como um órfão, de mãos nos bolsos, a
assistir ao nascer da manhã numa angústia cremosa que a lividez das árvores
macabramente sublinha. As madrugadas, de resto, são o meu tormento, gordurosas,
geladas, azedas, repletas de amargura e de rancor. Nada vive ainda e, todavia,
uma ameaça indefinível ganha corpo, aproxima-se, persegue-nos, incha-nos no
peito, impede-nos de respirar livremente, as pregas do travesseiro
petrificam-se, os móveis, agudos, hostilizam-nos. As plantas dos vasos avançam
para nós tentáculos sequiosos, do outro lado dos espelhos objectos canhotos recusam-se
aos dedos que lhes damos, os chinelos sumiram-se, o roupão não existe, e no
interior de nós, teimoso, insistente, dolorosamente lento, caminha este comboio
que atravessa Angola, de Nova Lisboa ao Luso, a transbordar de homens fardados
que cabeceiam contra as janelas à procura de um sono impossível.
Conhece o general Machado? Não,
não se franza, não procure, ninguém conhece o general Machado, cem em cada cem
portugueses nunca ouviram falar do general Machado, o planeta gira apesar desta
ignorância do general Machado, e eu pessoalmente odeio-o. Era o pai da minha
avó materna, a qual, aos domingos, antes do almoço, me apontava com orgulho a
fotografia de uma espécie de bombeiro antipático de bigodes, dono de numerosas
medalhas que tronavam no armário de vidro da sala juntamente com outros troféus
guerreiros igualmente inúteis, mas a que a família parecia prestar uma
veneração de relíquias. Pois fique sabendo que durante anos, aborrecido e
pasmado, escutei semanalmente, em folhetins narrados pela voz emocionada da
avó, as proezas vetustas do bombeiro elevadas na circunstância a cumes de
epopeia: o general Machado envenenou-me anos e anos o bife introduzindo na
carne o mofo indigesto de uma dignidade hirta, cuja rigidez vitoriana me
enjoava. E foi precisamente esta criatura nefasta, de que as órbitas globulosas
de prefeito ou de cura me reprovaram da parede, recusando-me mesmo a absolvição
dúbia que paira como um halo nos sorrisos amarelos dos retratos antigos, que
construiu, ou dirigiu a construção, ou concebeu a construção, ou concebeu e
dirigiu a construção do caminho de ferro em que seguíamos, de rebenta-minas na
dianteira, chocalhando numa planície sem princípio nem termo, mastigando as
conservas da ração de combate num desapetite em que morava já o medo pânico da
morte, que durante vinte e sete meses cresceu na humidade das minhas tripas os
seus cogumelos esverdeados. Na messe de oficiais do Luso, espécie de Bairro da
Madre de Deus de ruas geométricas e casas económicas plantado no planalto dos
Bundas, no espírito Portugal dos
Pequeninos corporativo que fez do Estado Novo uma constante
aberração por defeito ou por excesso, vi, pela primeira vez em muito tempo,
cortinas, cálices, mulheres brancas e tapetes: a pouco e pouco aquilo a que
durante tantos anos me habituara afastava-se de mim, família, conforto,
sossego, o próprio prazer das maçadas sem perigo, das melancolias mansas tão
agradáveis quando nada nos falta, do tédio à António Nobre nascido da crença
convicta de uma superioridade ilusória. Por exemplo, a tristeza depois do
jantar substituía as palavras cruzadas do jornal, e entretinha-me a preencher
os quadradinhos em branco de trabalhosas elucubrações oscilando entre o idiota
chapado e o vulgar profundo, limites aliás entre os quais o pensamento lusitano
se condensa, equivalentes metafísicos dos versos dos cravos de papel». In
António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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