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As profecias e os cartapácios dos
sebastianistas
«(…) Na sociedade
moderna, científica e tecnológica, a profecia já não funciona, faltando-lhe
para tal as condições indispensáveis. Vem a ser substituída por análises
científicas e processos técnicos, que invadem quase todos os terrenos da
cultura hodierna e, dentro dos seus limites, funcionam com grande perfeição. Mas
a ciência e a técnica têm os seus limites fatais: ambas são incapazes de dar
sentido à vida dos indivíduos e das colectividades. Examinando de perto as
ideologias modernas, que a muitos parecem objectivas e definitivas, descobrimos
nelas também elementos míticos. Estes mostram muitas vezes ter mais força
existencial e maior poder conquistador do que os componentes meramente
racionais. Intellectus supponens
fidem. Vimos que
desde os primeiros séculos da era cristã se forjaram profecias sobre o rumo do
processo histórico, mas que elas nunca pulularam tanto entre os cristãos como
no fim da Idade Média.
Em Portugal, o
profetismo teve o seu apogeu mais tarde, nos séculos XVI, XVII e XVIII. Os
forjadores de profecias costumavam pô-las na boca de uma pessoa ilustre, já há
muito tempo defunta. Este método tinha duas vantagens. Em primeiro lugar, a antiguidade
do vaticínio conferia-lhe certa dignidade. Em segundo lugar, este método
possibilitava aos autores iniciar os seus oráculos com o prenúncio de
acontecimentos já sucedidos na época da redacção. E a verdade das profecias já
cumpridas devia garantir a das profecias ainda por cumprir. A profecia
propriamente dita continha geralmente, além de admoestação e imprecações,
material de propaganda a favor de uma corrente religiosa, combinado com
qualquer movimento político ou social. Aos modernos causa espanto o facto de
que esses produtos fantasistas brotavam sem escrúpulos da mente de pessoas que
decerto se consideravam a si mesmas como honradas e honestas e como tais eram consideradas
por outros. Hoje, estamos espontaneamente inclinados a condenar tais falsificações.
Mas não sejamos demasiadamente severos com aquela gente. Diz um crítico
francês: pour des esprits peu
formés à l’observation, attribuant à ce qui est une importance bien moindre
qu’à ce qui doit être, introduire dans les archives le document qui y manque
malheuresement, n’est pas mentir, c’est au contraire rétabilir une vérité
supérieures.
Fosse isso como fosse, quase todas as profecias eram redigidas numa
linguagem obscura e enigmática, prestando-se a mais de uma interpretação. E,
assim como os documentos históricos dão lugar a uma constante discussão entre
os estudiosos do passado sobre a sua correcta interpretação, assim as profecias
criavam uma classe de exegetas que disputavam entre si o seu verdadeiro
significado. Havia inúmeras disputas entre pessoas unidas na sua fé nas
profecias, mas muito desunidas na sua interpretação. Os combatentes mostravam,
por vezes, algum talento em discernir o ponto fraco da argumentação dos seus
adversários, mas falhavam redondamente em provar, de maneira convincente, a sua
própria opinião. Essas discussões fazem-nos pensar nos debates parlamentares
entre conservadores e progressistas, que não convencem ninguém, a não ser quem
já esteja convencido. Assim a luta continuava indecisa, sem vencedores finais
nem derrotados definitivos. Os combatentes gostavam de assumir ares de eruditos,
mas a erudição que exibiam mal resiste a um exame crítico, porque toda ela
estava baseada em premissas ilusórias. Acontece, porém, que também as ilusões
fazem parte da História, chegando a ser, por vezes, motrizes mais pujantes do
que as lucubrações de ordem puramente intelectual. Por mais eruditos e, em alguns
casos, inteligentes que fossem os polemistas, quase nenhum deles levantava o
problema que ao homem moderno parece fundamental: a autenticidade das profecias
alegadas». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto
Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.
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