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«(…) Palavras mais desenganadoras
do que estas não podia ter ouvido. Talvez Leonor preferisse que Briolanja lhe
dissesse que as estrelas tinham confirmado a conquista por parte dela de um rei
e de um trono para assim poder sonhar com um mundo fantástico, improvável que
fosse, impossível que se revelasse. Pena que a verdade fosse tão dolorosa e que
só mesmo a mentira lhe fizesse idealizar o cume de uma alcáçova e lhe
consentisse a ideia de que o discreto estatuto de senhora do morgado de
Pombeiro era apenas provisório e não definitivo. Depois de alguns momentos de
reflexão, com ar sério e num tom de voz indisfarçavelmente cínico, fitou a ama
e disse: também tive um sonho esta noite. Vê lá tu que sonhei que o meu desalmado
esposo se sentiu mal por causa de uma coisa que bebeu misturada no vinho. Durante
alguns instantes fez-se um silêncio quase absoluto, deixando as duas mulheres
inertes e frias como as grandes rochas da serrania defronte à casa.
Ainda não me esqueci do caso,
senhora, atalhou Briolanja ao aperceber-se do que a jovem queria dizer com a
história do falso sonho. Eu sei que sim, boa amiga, sei que tens boa cabeça,
mas agora fecha a porta e deixa-me sozinha.
Passaram-se entretanto quatro
semanas sobre este episódio sem que o dono da casa sentisse qualquer indisposição
súbita ou o professor Vicente Esteves desse sinal de vida. Certa tarde, já
Leonor tinha perdido a esperança de ter o lente como hóspede, apareceu ele
encharcado da chuva e sem bagagens, com um braço tolhido de dor e um golpe na
testa. Que aconteceu?, perguntou a dama, incrédula e assustada, quando viu o homem
naquele estado à porta de casa. Entre, senhor, entre e vá à lareira enxugar-se
e aquecer-se. Vicente Esteves contou que fora assaltado por quatro homens,
armados de punhais, quando estava já a pouco menos de duas léguas de Pombeiro e
que os ferimentos no braço e na cabeça tinham sido causados pela violência das
pancadas que sofreu antes de lhe levarem o animal em que se transportava, o
capeirote que o protegia do frio e até mesmo os livros para o trabalho que
pretendia realizar. Impressionadas com o relato do homem, Briolanja Mendes, que
assistia à conversa junto ao umbral da porta, persignou-se logo que ele deu por
findo o relato, enquanto Leonor Teles se benzia e proclamava in nomine
patris et filii et spritus sancti. Amen.
Visivelmente abatido, destroçado,
de pé junto à lareira, Vicente Esteves olhou para Leonor e com um ar doce e cândido
comentou: isto passa, senhora, o pior de tudo são os livros que me levaram e
que dificilmente conseguirei reaver. Sem eles, terei de voltar para Coimbra tão
depressa o tempo amaine e tenha para a viagem alguém por companhia. Leonor
estremeceu. Ela, que tinha esperado mais de um mês por aquele homem de boas
regras e melhores costumes, discreto, sereno, prazenteiro, estava a um pequeno
passo de o perder, quem sabe se de uma vez por todas, por causa de um grupo de
miseráveis plebeus endemoninhados a quem só a morte violenta, na sua opinião,
serviria como castigo para tamanho crime. E o seu estimado esposo, senhor João
Lourenço, onde está?, perguntou Vicente Esteves. Esse foi para a caça sem
receio de que a chuva o molhe ou os criminosos o assaltem, respondeu com um
sorriso, mas num tom de voz desprezível». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina
do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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