segunda-feira, 24 de junho de 2019

A Hora do Diabo. Fernando Pessoa. «É com ele que estou falando... Daqui a seis meses? Seis meses de quê? De quê?! Seis meses... Seis meses solares? Ah, sim»

jdact e wikipedia

A Hora do Diabo
«(…) Sou o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da Criação. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo os reis de adão que reinaram mal antes de Israel. A minha presença neste universo é a de quem não foi convidado. Trago comigo memórias de coisas que não chegaram a ser mas que estiveram para ser. (Então face não via face, e não havia equilíbrio). A verdade, porém, é que não existo nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus diversos criadores e seus diversos Satãs mais ou menos perfeitos e adestrados são vácuos dentro do vácuo, nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa nenhuma. Tudo isto, não estou falando consigo mas com o seu filho... Não tenho filho... Isto é, vou tê-lo daqui a seis meses, se Deus quiser... É com ele que estou falando... Daqui a seis meses? Seis meses de quê? De quê?! Seis meses... Seis meses solares? Ah, sim. Mas a gravidez vai por meses lunares, e eu mesmo não posso contar senão por meses de Lua, que é minha filha, isto é, a minha cara vista nas águas do caos. Com a gravidez e todas as porcarias da terra não tenho nada a ver, nem sei porque graça me foram medir essas coisas pelas leis da lua que forneci. Porque não arranjaram outra bitola? Para que é que o omnipotente precisava do meu trabalho?
Desde o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas por natureza meus amigos que me defendem, me não têm defendido bem. Um inglês chamado Milton fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que nunca se travou. O outro, o alemão Goethe deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam. As Igrejas abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram quer não, um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio. É por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por mim que, quando mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os dominadores que dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem criar, cuja voz é um fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. A minha luz paira sobre tudo quanto é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.
Que homem pousou sobre os teus seios aquela mão que foi minha? Que beijo te deram que fosse igual ao meu? Quando, nas grandes tardes quentes, sonhavas tanto que sonhavas de sonhar, não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria indefinidamente? Era eu! Sou eu! Sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar. Talvez, no fundo imenso do abismo, Deus mesmo me busque, para que eu o complete, mas a maldição do Deus Mais Velho o Saturno de Jeová paira sobre ele e sobre mim, separa-nos, quando nos devera unir, para que a vida e o que desejamos dela fossem uma só coisa. O anel que usas e amas, a alegria de um pensamento vago, o sentires que estás bem ao espelho em que te vês não te iludas: não és tu, sou eu. Sou eu que ato bem todos os laços com que as coisas se decoram, que disponho certas as cores com que as coisas se ornam. De tudo quanto não vale a pena ser, faço eu meu domínio e o meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem peso nem medida, isso é meu». In Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, História e Alcance, Assírio e Alvim, Lisboa, 1997, ISBN 978-972-370-435-8

Cortesia AAlvim/JDACT