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«(…) Ele cortejava-a profundamente, de resto, como usava fazer com todas as
mulheres sem excluir as filhas, incapaz de rispidez perante elas, domado por
aquele sortilégio de saias, de vozes cantantes, de risos e meneios, de
nervosismos lacrimosos e doces tiranias do instinto. Era Quina a
primeira a aparecer-lhe no patamar da cozinha, quando o distinguia no declive
do monte, de regresso das feiras que frequentava sempre com uma paixão de
aventura. A sua bênção, meu pai, pedia, com uma exultação íntima, impaciente e
quase feliz. Ele encarava-a com o olhar pícaro e fino, que não sabia tornar de
todo paternal. Deus te abençoe..., dizia, devagar. E aquilo tinha o sabor duma cumplicidade,
duma pequena folia trocista, contra o próprio Deus. Ele era também o seu herói
, sob o aspecto do mistério, desses factos que polvilham de pitoresco a
história das famílias e que, na infância, quando se decifram apenas no círculo
dos adultos, surgem como a fábula mais original. A fama dos seus amores, às vezes
com que deploráveis pormenores!, chegava-lhe juntamente com um eco de suspiroso
desdém que Quina repelia como vivas injúrias aos actos de seu pai. Na verdade,
ela aplaudia com fanatismo a integridade do homem na sobriedade das suas leis,
junto das quais as lágrimas duma mulher não passavam de superfluidades
sentimentais. A corte feminina sempre tão numerosa em que vivia, incluindo suas
tias e casas continuadas por elas, causava-lhe irritação, pois ela lastimava
desde menina o ser considerada um número entre a descendência de raparigas
submissas e incapazes que se destinam a uma aliança tutelada, e que, mesmo
atingindo o matriarcado, eram vencidas. Todas as irmãs de Maria tinham casado. Balbina, escolhida como madrinha
de Quina, vinha às vezes, da sua casa de Água-Levada, procurá-la para lhe
oferecer hospitalidade durante o tempo das sachas ou das esfolhas, convocando
assim uma jornaleira gratuita. Quina ia, sem que mesmo a sua vontade fosse
consultada, mas, uma vez aboletada em casa de sua tia, vivia galhardamente
aquela turbulência de trabalho, de gente que se desconhece ou se reencontra, e
divertia-se muito. Balbina era um especial carácter que preferia a mentira
quando lhe era indiferente optar pela verdade. Mentia muito, sem desviar nunca
os belos olhos inocentes, era mesquinha, trafulha, com um gosto acentuado pelas
aparências, as honras, as falsas tafularias. Degenerou, dizia Maria, que não
seria capaz de usar no dedo um anel de plaqué. Mas Quina gostava da sua
madrinha, se bem que ela jamais a convidasse sem lhe extorquir retribuição e a
presenteasse pela Páscoa com um folar pobre, muito chorado à conta das suas
dificuldades, as suas perdas, as obrigações que devia ao lar e aos filhos. À
ceia, quando queria avisar discretamente uma parcimónia geral, recostava-se,
com um pequeno suspiro enfastiado, e dizia: estou até... Agora, nem cavacas...
Porém, não tinha comido senão um magro caldo, em cujos
restos, num fundo de migas de broa, pousavam estilhaços de ossos. Amava as
pompas, as grandes relações. O único irmão, José, de todos o mais semelhante a Maria,
emigrara e, longe, fazia fortuna; outra afilhada sua e parenta não muito
próxima casara com um tio regressado do Tucumán onde as plantações de açúcar
lhe tinham proporcionado a auréola dum pequeno Cresus. Chamava-se Elisa Aida, a
moça e com catorze anos entrara no leito com baldaquino e penas de avestruz,
copiado duma água-forte de Moreau le Jeune, à ordem do velho achacoso, muito
afeito a caprichos pantagruélicos, bufos, que era o noivo, seu tio. Dizia-se,
com sorriso de piedade, que a rapariga pespontara castamente a camisa,
encerrando-se dentro dela, no temor de se achar descomposta junto do homem que
a comprara, mercê duma assinatura rabiscada no constrangimento da luva de
quinze botões que ela não lograra esfolar da mão. Ela acadima, disse Balbina,
como costumava, ao colocar uma galinha riça sobre o indez. Está em boa idade de
se fazer uma fidalga». In Agustina Bessa Luís, A Sibila, 1954,
Relógio d’Água, 2017, ISBN 978-989-641-747-5.
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