Cortesia
de wikipedia e jdact
«Natália
Correia acharia graça a que a celebração apesar de tudo precoce da sua obra, para
o meio português ainda cativo do seu anedotário e da sua lava, matricialmente
antifrancesa, fosse iniciativa de uma Secção de Estudos Franceses, capela
desses voos rasteiros que foram contaminando o excessivo, nocturno, magnífico
século XVIII português... Mais inclinada à Itália, londrina de electiva afinidade
(e de Inglaterra não chegam hoje ecos de uma sua leitura dedicada, a par de
Fernando Pessoa?), a desconcertada poeta dos raros versos em Francês da sua
Poesia Completa viria a reconhecer neles uma emergência de uma língua materna
universal, ponto ou a tal ilha encantada onde Natália diz que nos esquecemos das
palavras e onde nunca algum dia teremos repouso, apagamento que reúne começo e
fim, o espírito.
Feiticeira e Cotovia da abolição
dos contrários, casando astros na inversão das roseiras, insinuando a monja na
fêmea e o iberismo num dom Juam que se encontra na Unica, persiste, a um tempo
por coerência e paradoxo, numa assim inesperada irresolução do seu pensamento
que reside no sacrifício histórico da vocação romântica nacional ao
racionalismo postiço de além-Pirenéus. Natália Correia derrubou paredes, como o
comparatista no exercício de um seu reflexo natural, intuiu a fusão do Barroco
e do Romantismo em Portuga1,correspondeu a Almeida Garrett que anunciava
inventar a vacina para a já antiga moléstia peninsular, transportou o soneto para
o futuro e regressou, não querendo, é claro, que de mero regresso se tratasse,
às canções de amigo e às bailias, na era nuclear. Denunciou, no fundo, a mais
doutoral das leviandades que despoja o contemporâneo de dom Dinis, de quem
sempre se considerou neta.
Ela, em quem as intuições sempre
foram ponto de chegada, não pode, contudo, intuir que um dia esse Classicismo
francês que tanto deplorava no espartilho dos seus regrados compartimentos
viria, ele também, a ser invertido, num movimento tão nataliano, ao ponto de, a
partir das duas últimas décadas do século XX, o Grand Siècle ser investigado nos subterrâneos do
clandestino, do sombrio, do interdito, da graça, até do seu tão querido
irracional... Poderei mesmo resumir a direcção dos actuais estudos literários
sob Luís XIV, o rei da luz, no mesmo modo genial com que subintitulou a sua
obra maior: O Sol nas Noites e o
Luar nos Dias. Imagino-a
a sorrir, agradada ou maliciosa? Mas a Natália Correia não teria eu nunca
surpreendido». In Cristina Marinho
Breve
Perfil de Natália em sua Obra
«Natália Correia é, pelo que há de
heterogéneo, tumultuoso e apaixonado na sua obra, como na sua vida, figura singular
da nossa literatura do século XX. Tendo-se estreado com crónicas de viagem
sobre os Estados Unidos (Descobri que sou Europeia), onde já afirmava uma
personalidade muito forte, excessiva e contundente, foi na poesia que
iniludivelmente nos deixou o mais rico e duradouro filão da sua escrita. Deve
muito à experiência surrealista e em particular a Mário Cesariny Vasconcelos.
Dele recebeu (e transformou) o desatino verbal de longos poemas anafóricos,
recheados de surpreendentes metáforas, por vezes atingindo a violência e a
beleza de alguns textos inspirados onde se abrem múltiplas pistas de sentido
para representar o universo concentracionário do fascismo português, a
mediocridade e a repressão, a pífia moral salazarista, a hipocrisia quase geral
como no célebre poema Queixa das Almas Jovens Censuradas de um dos seus
melhores livros, Dimensão Encontrada. Estridente na polémica,
provocatória e original na brilhante tentativa teatral que é A Pécora,
propensa simultaneamente à espiritualidade e à magia, à cabala, ao culto do
Espírito Santo, tão radicado na sua terra mãe, os Açores, deu-nos também
ensaios e poemas todos voltados para a raiz, para a mátria, para a
transcendência. Do mesmo modo, exibindo renovado virtuosismo orquestral e
retórico, escreve, na ultima fase da sua vida os Sonetos Românticos, mais
um desafio, tão longe das suas ficções de vanguarda como Madona ou As
Núpcias, onde eleva o tema do incesto, grato à mitologia clássica a uma
rara completude de desarmonia / harmonia. A infantilização do País, os homens
transformados em autómatos, a imitação da felicidade para estrangeiro ver tudo
isso, metaforizou Natália Correia nessas célebres quadras que José Mário Branco
cantou em França para os emigrantes e exilados e levou a todos os lugares de
Portugal depois de Abril:
Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem
pecado e sem inocência.
Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.
Romântica foi-o também decerto
Natália Correia, mesmo pelo meio do onirismo surrealista ou da sua acalorada defesa
dos direitos da mulher, na sua fascinação pelo andrógino, na expressão do eros
total, no culto da mãe, na religação às suas ilhas de bruma e misticismo, até
em muitas das suas veementes tomadas de posição no Parlamento ou em praça pública,
no pequeno ecrã da televisão. O relevo, quase excessivo, da mulher política
obscureceu por vezes, o talento real e a sensibilidade da escritora. É bom que
lhe façamos justiça e olhemos fundo para a sua obra, rio luminoso, por vezes em
chamas, que traz consigo muito do que Natália viveu, leu, sonhou, quis
construir e deixou incompleto, como quase todos os artistas da paixão. O lado
narcísico da sua personalidade, que convive com toda essa força e generosidade,
também lá está, debruçado sobre o espelho da palavra». In Urbano Tavares Rodrigues
In Natália Correia, Dez Anos Depois…, Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Secção de Estudos Franceses do DEPER, 2003, ISBN 972-935-080-9.
Cortesia
de FLUPorto/SUF/DEPER/JDACT