segunda-feira, 13 de maio de 2019

Dez Anos Depois… Natália Correia. «É bom que lhe façamos justiça e olhemos fundo para a sua obra, rio luminoso, por vezes em chamas, que traz consigo muito do que Natália viveu, leu, sonhou, quis construir e deixou incompleto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Natália Correia acharia graça a que a celebração apesar de tudo precoce da sua obra, para o meio português ainda cativo do seu anedotário e da sua lava, matricialmente antifrancesa, fosse iniciativa de uma Secção de Estudos Franceses, capela desses voos rasteiros que foram contaminando o excessivo, nocturno, magnífico século XVIII português... Mais inclinada à Itália, londrina de electiva afinidade (e de Inglaterra não chegam hoje ecos de uma sua leitura dedicada, a par de Fernando Pessoa?), a desconcertada poeta dos raros versos em Francês da sua Poesia Completa viria a reconhecer neles uma emergência de uma língua materna universal, ponto ou a tal ilha encantada onde Natália diz que nos esquecemos das palavras e onde nunca algum dia teremos repouso, apagamento que reúne começo e fim, o espírito.
Feiticeira e Cotovia da abolição dos contrários, casando astros na inversão das roseiras, insinuando a monja na fêmea e o iberismo num dom Juam que se encontra na Unica, persiste, a um tempo por coerência e paradoxo, numa assim inesperada irresolução do seu pensamento que reside no sacrifício histórico da vocação romântica nacional ao racionalismo postiço de além-Pirenéus. Natália Correia derrubou paredes, como o comparatista no exercício de um seu reflexo natural, intuiu a fusão do Barroco e do Romantismo em Portuga1,correspondeu a Almeida Garrett que anunciava inventar a vacina para a já antiga moléstia peninsular, transportou o soneto para o futuro e regressou, não querendo, é claro, que de mero regresso se tratasse, às canções de amigo e às bailias, na era nuclear. Denunciou, no fundo, a mais doutoral das leviandades que despoja o contemporâneo de dom Dinis, de quem sempre se considerou neta.
Ela, em quem as intuições sempre foram ponto de chegada, não pode, contudo, intuir que um dia esse Classicismo francês que tanto deplorava no espartilho dos seus regrados compartimentos viria, ele também, a ser invertido, num movimento tão nataliano, ao ponto de, a partir das duas últimas décadas do século XX, o Grand Siècle ser investigado nos subterrâneos do clandestino, do sombrio, do interdito, da graça, até do seu tão querido irracional... Poderei mesmo resumir a direcção dos actuais estudos literários sob Luís XIV, o rei da luz, no mesmo modo genial com que subintitulou a sua obra maior: O Sol nas Noites e o Luar nos Dias. Imagino-a a sorrir, agradada ou maliciosa? Mas a Natália Correia não teria eu nunca surpreendido». In Cristina Marinho

Breve Perfil de Natália em sua Obra
«Natália Correia é, pelo que há de heterogéneo, tumultuoso e apaixonado na sua obra, como na sua vida, figura singular da nossa literatura do século XX. Tendo-se estreado com crónicas de viagem sobre os Estados Unidos (Descobri que sou Europeia), onde já afirmava uma personalidade muito forte, excessiva e contundente, foi na poesia que iniludivelmente nos deixou o mais rico e duradouro filão da sua escrita. Deve muito à experiência surrealista e em particular a Mário Cesariny Vasconcelos. Dele recebeu (e transformou) o desatino verbal de longos poemas anafóricos, recheados de surpreendentes metáforas, por vezes atingindo a violência e a beleza de alguns textos inspirados onde se abrem múltiplas pistas de sentido para representar o universo concentracionário do fascismo português, a mediocridade e a repressão, a pífia moral salazarista, a hipocrisia quase geral como no célebre poema Queixa das Almas Jovens Censuradas de um dos seus melhores livros, Dimensão Encontrada. Estridente na polémica, provocatória e original na brilhante tentativa teatral que é A Pécora, propensa simultaneamente à espiritualidade e à magia, à cabala, ao culto do Espírito Santo, tão radicado na sua terra mãe, os Açores, deu-nos também ensaios e poemas todos voltados para a raiz, para a mátria, para a transcendência. Do mesmo modo, exibindo renovado virtuosismo orquestral e retórico, escreve, na ultima fase da sua vida os Sonetos Românticos, mais um desafio, tão longe das suas ficções de vanguarda como Madona ou As Núpcias, onde eleva o tema do incesto, grato à mitologia clássica a uma rara completude de desarmonia / harmonia. A infantilização do País, os homens transformados em autómatos, a imitação da felicidade para estrangeiro ver tudo isso, metaforizou Natália Correia nessas célebres quadras que José Mário Branco cantou em França para os emigrantes e exilados e levou a todos os lugares de Portugal depois de Abril:

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Romântica foi-o também decerto Natália Correia, mesmo pelo meio do onirismo surrealista ou da sua acalorada defesa dos direitos da mulher, na sua fascinação pelo andrógino, na expressão do eros total, no culto da mãe, na religação às suas ilhas de bruma e misticismo, até em muitas das suas veementes tomadas de posição no Parlamento ou em praça pública, no pequeno ecrã da televisão. O relevo, quase excessivo, da mulher política obscureceu por vezes, o talento real e a sensibilidade da escritora. É bom que lhe façamos justiça e olhemos fundo para a sua obra, rio luminoso, por vezes em chamas, que traz consigo muito do que Natália viveu, leu, sonhou, quis construir e deixou incompleto, como quase todos os artistas da paixão. O lado narcísico da sua personalidade, que convive com toda essa força e generosidade, também lá está, debruçado sobre o espelho da palavra». In Urbano Tavares Rodrigues

In Natália Correia, Dez Anos Depois…, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Secção de Estudos Franceses do DEPER, 2003, ISBN 972-935-080-9.

Cortesia de FLUPorto/SUF/DEPER/JDACT