sábado, 4 de maio de 2019

O Retrato do Rei. Ana Miranda. « Mas foram paulistas os que gastaram o seu dinheiro, e o seu sangue, para desbravar os sertões. O rei dom Pedro, que Deus tenha, havia prometido que os descobridores de ouro seriam donos do lugar»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Contrato da Carne
«(…) Um abuso contrário à profissão desses religiosos. Concordo, senhores, disse Fernando de Lancastre. No palácio, dois paulistas conversavam com o governador. Um deles, Rendom, vestido com roupas de fidalgo, batia impaciente com a bengala no joelho. Tinha o nariz recto e olhos negros herdados de seus ascendentes espanhóis. O contrato da carne tem que passar para as nossas mãos, disse Rendom. Talvez fosse melhor acabar com o monopólio. Seria mais justo que todos pudessem negociar a carne. Paulistas ou quem quer que seja. Isso para evitar muita ruína. O governador temia tomar partido. O contrato da carne era assunto embaraçoso, havia imensos interesses envolvidos. Precisava ser prudente. Mais ruínas do que já causaram os forasteiros?, disse Kendom. Foi um baiense quem investiu as suas riquezas para limpar o Caminho do Gado dos bandidos que o dominavam, argumentou o governador. E não um paulista. Mas foram paulistas os que gastaram o seu dinheiro, e o seu sangue, para desbravar os sertões. O rei dom Pedro, que Deus tenha, havia prometido que os descobridores de ouro seriam donos do lugar. Nós, paulistas, encontramos o ouro nos sertões. Sem que pudéssemos esperar por isso, o monarca abriu as minas para os estrangeiros. Respeitamos tudo que vem de alta majestade, é claro, mas já estamos sofrendo demasiadamente com a presença dos forasteiros, sejam reinóis, pernambucanos ou baienses. Se soubésseis o tipo de aventureiros que chegam de Portugal, ficaríeis horrorizado. Os sujeitos envolvidos no comércio da carne são facinorosos, homens de contrabando. Cobram o que querem por um quarto de boi. Com o contrato da carne em nossas mãos, poderemos ter maior controle sobre os desmandos do lugar. Não é no dinheiro que estamos interessados. Sei disso, disse Fernando. O senhor Rendom pretende partir na frota para Portugal, disse o outro homem, Júlio César, com agravo ao novo rei. Fernando dissimulou a sua aflição aspirando ar e elevando o rosto. Colocou as mãos sobre a mesa. Agravo? Sim, disse Rendom. Tenho apoio dos senhores de Belmonte em Portugal. O rei me receberá, vossa mercê sabe que faço parte da nobreza.
Vou dar a sua majestade notícias dos sofrimentos do povo. Levo também denúncias acerca de sonegamento dos impostos, e sobre o contrabando de ouro que os reinóis praticam à sombra das concessões. Evidentemente, não vou comprometer-vos diante do soberano ou do Conselho Ultramarino. Fernando sentiu os seus músculos se distenderem. Gostaria de ajudar-vos mais do que posso, disse o governador. O contrato da carne é privilégio concedido pelo rei, que Deus guarde. Sua majestade está assoberbada, começando o seu reinado com a terrível guerra da sucessão de Espanha pela frente. Não vai poder dar ouvidos a assuntos tão pequenos. E ainda não me decidi completamente sobre a matéria. Sabemos que apenas o rei pode conceder o contrato. Mas vossa mercê, como governador da capitania, pode suspendê-lo. O governador caminhou pela sala, com as mãos às costas. Media as possíveis consequências de um encontro do nobre paulista com o soberano. Quem seria aquele jovem que iria reinar sobre todas as terras de Portugal e das colónias? Dele, Fernando sabia apenas que era belo, apreciava a música e fazia alternarem-se no seu leito todas as mulheres que desejava, entre nobres e plebeias». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.

Cortesia de ES/CdasLetras/JDACT