Vaticano.
19 de Abril de 2005
«(…) O Statu Quo foi quebrado, atirou, levantando o olhar
para um ponto qualquer na parede que tinha um quadro grande do Sumo Pontífice
numa expressão neutra. Aguardou a reacção do austríaco. Desenvolve, foi a única
resposta, com o sotaque germânico a sobrepor-se ao italiano, normalmente
correcto. Tarcísio precisava mesmo da mente aguçada e lúcida do amigo. Nenhuma solução
se apresenta sem que tenhamos todos os dados na nossa mão. Tarcísio optou
novamente pelo relato conciso e frio dos elementos, por muito que lhe custasse.
Mataram o Aragonês, o Zafer, o
Sigfried está desaparecido, assim como o Ben Isaac e o filho, disparou os nomes
e os factos à queima-roupa como se mencioná-los o livrasse deles e os
transferisse para Schmidt. Sentiu-se egoísta durante uns instantes, mas logo
passou. Quando morreram?, questionou Schmidt não transmitindo qualquer emoção.
Se os conhecia não transpareceu. Durante a semana. Aragonês no Domingo, Zafer
na terça, o Sigfried desapareceu na quarta. Desconhecemos há quanto tempo
desapareceu o clã Isaac. Desapareceu a família inteira?, quis saber Schmidt. Sim.
O casal e o herdeiro, completou Tarcísio. Quem tens a tratar disso? O nosso
oficial de ligação com o SISMI e um enviado especial. Quem? O padre Rafael.
Lembras-te dele? Claro que sim. Muito competente. Não precisas de mim,
argumentou o austríaco. O assunto está em boas mãos.
Tarcísio não parecia tão
convencido. Aliás, antes pelo contrário. Estava alvoroçado e agitado. Batia com
um pé no chão como se estivesse ligado à corrente. Se isto nos explode na
cara... A Igreja sempre sobreviveu a tudo e a todos, proferiu Schmidt. Não vejo
razões para que não sobreviva agora. Não vês? Andam atrás de documentos
importantes. Documentos que comprovam que... Que não comprovam nada, contrapôs
o austríaco. Não se sabe quem os escreveu nem por que motivos. São apenas
palavras. A ordem das palavras fere e mata, atalhou Tarcisio. As palavras têm a
força que lhes dermos, discordou Schmidt sem alterar o tom de voz. É isso que
defendes agora? Nada precisa da minha defesa. Muito menos a Igreja. Tarcísio
levantou-se irritado e começou a andar de um lado para o outro com as mãos
atrás das costas. Estamos em guerra, Hans. Estamos em guerra há 2000 anos.
Sempre ouvi falar nessa guerra e, no entanto, nem sequer temos exército,
ironizou Schmidt.
Não consegues ver o que
acontecerá se mãos alheias conseguirem os documentos? Se bem recordo, o Papa
Roncalli acautelou esse cenário. O acordo… O acordo acabou, interrompeu Tarcísio,
levantando as mãos ao céu. Previa uma duração de 50 anos. Terminou há dias.
Eu sei, Tarcisio. Mesmo assim não
acredito que Ben Isaac se aproveitasse dos docu... Por que não? O acordo
acabou. Pela primeira vez o padre austríaco olhou-o apreensivo. Porque eu
conheci-o aquando da renovação do acordo. Ben Isaac poderá ser vítima, nunca
vilão, afirmou o austríaco peremptório. Isso foi há 25 anos. Viste-o duas ou três
vezes. Não esqueçamos que ele é..., judeu, disse-o como se se tratasse de uma
falha profunda. Nós rezamos a um judeu, Tarcísio. Não é a mesma coisa,
desculpou-se o cardeal. Não vejo como possa ser diferente. Ele nunca conheceu
outra religião. Jesus fundou a Igreja Católica. Tarcísio, por favor. És o
cardeal mais influente da Igreja Católica Apostólica Romana, actualmente. Jesus
nunca conheceu a Igreja Católica ou qualquer outra herdeira do nome Dele. Nunca
a fundou e, muito menos, pediu que a construíssemos.
O
assunto desconfortava Tarcísio. Era um ponto de afastamento entre os dois
homens. Exasperava-o este pensamento demasiado livre de Schmidt, só lhe arranjara
problemas. Relembrara justamente que essa era a principal razão para que o
amigo se encontrasse em Roma nesta noite. Tornou a sentar-se e deixou que o silêncio
se espraiasse pelo gabinete. Hans permanecia imóvel, de perna cruzada, o Austrian Eis, imperturbável. Estás
preparado para amanhã?, acabou por perguntar Tarcísio. Ver-se-á quando o amanhã
vier. Não te vou poder ajudar perante a congregação, Hans. Lamento, avisou o outro
desajeitadamente. Lamentava genuinamente». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia
de PEditora/JDACT