sexta-feira, 12 de junho de 2020

O Prisioneiro da Torre Velha. Quare? Fernando Campos. «Fora freixo no alto monte, verde e robusto, tocado apenas do vento brando, apenas embalado pelo canto da fonte»

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Nuevo la vi
«(…) Boa tempera do aço de alma é a dor. Em poucas horas, de adolescente ferido por uma contrariedade de amor, me tornei adulto com o sentido da fragilidade que é a vida deste pobre bicho da terra tão pequeno. Na retina de meus olhos, a imagem doce, sempre até aí viva e dolorosa, do rosto de Branca Vilhena, vinham agora sobrepor-se os cruentos vultos de companheiros, amigos e parentes dilacerados pela tragédia.
Tínhamos chegado em salvamento a terra, na trégua de mar e vento ao descobrir do sol. Com presteza se despacharam doze faluas e algumas pinaças a acudir à gente que ficara no galeão. Muitos, mal aconselhados do medo, nós da praia bem os víamos a lançarem-se às ondas, a fim de serem aos outros preferidos na salvação, acabando por lhes ser preferidos na morte.
Apenas repontou a maré, as vagas novamente investiram com renovada sanha sobre aquele desmantelado colosso. Os franceses, sem se deixarem vencer do temor, iam acostando as faluas à capitana e recebendo, como de salto, algumas pessoas e logo, ante o perigo e com a pressa, se afastavam. Hora de desordem, espanto e confusão. Três ondas bastaram a sumir horrendamente aquela célebre capitana. Da força do primeiro mar se romperam as amarras que estavam no fundo, o segundo encostou o buco sobre os bancos do recife, o terceiro o submergiu nos brevíssimos ais dos infelizes. Assim se acabou a majestade de tão potentíssimo lenho, da invocação de três santos, Santo António, São Diogo, São Vicente, que os três patronos não foram bastantes a mediar diante de Deus as preces dos homens, aquele que pouco tempo antes, embandeirado de vitórias, singrava paralelos, climas e meridianos por uma e outra esfera e triunfava de mares, regiões e inimigos. De longe os montes olhavam entristecidos o ímpeto de tamanhos golpes contra aquele herói moribundo…

Fora freixo no alto monte,
verde e robusto,
tocado apenas do vento brando,
apenas embalado pelo canto da fonte.
Tão soberbo, levanta um dia a fronte.
Parte do bosque a fazer-se navio.
Luta com mares e ventos:
colhe perdas, destroços.
Chora sua loucura.
De longe vê a terra,
estende os braços,
deseja chegar a ela.
Não lho consente o mar,
nem em pedaços!...

Que estranho me sinto! Um como torpor íntimo que me encortiça a alma, me seca as lágrimas, me torna insensível à imensa lástima que ali a meus olhos se desenlaça. Como se eu fosse outro, muito distante, no cérebro a gerarem-se-me rimas para futuros versos que refervem e se espumam no pensamento... Caio em mim e aflige-me interiormente não sei se a mofina daqueles desgraçados, se de mim próprio.
Sempre antes do tempo chega a morte, por mais prevenida. Não escaparam alguns, que a sua hora, escrita no livro do destino, rematara ali seu prazo ou, no baralho da fortuna, uns saiam mortos, outros vivos, maculados os olhos e as almas dos que da praia assistíamos ao calamitoso espectáculo». In Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha, Quare?, 2003, Difel SA, 2003, ISBN 972-290-669-0.

Cortesia de Difel/JDACT