segunda-feira, 22 de junho de 2020

Duas Irmãs. Um Rei. Philippa Gregory. «Nem sequer ela me pode tirar a minha posição. Ana e o meu pai foram atrasados pelas tempestades de Primavera e eu dei por mim, infantilmente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Duas Irmãs. Um Rei
Primavera de 1521
(…) Os homens que se encontravam na margem do rio retiraram os chapéus e ajoelharam-se, à medida que a barcaça real passava velozmente, com uma agitação de galhardetes e um vislumbre de ricos tecidos. Eu ia na segunda barcaça, com as damas da corte, a da rainha. A minha mãe estava sentada ao meu lado. Num raro momento de interesse, lançou-me uma olhadela e observou: estais muito pálida, Maria, sentis-vos mal? Não pensei que ele fosse ser executado, respondi. Pensei que o rei iria perdoar-lhe. A minha mãe inclinou-se para a frente, para que a sua boca ficasse encostada à minha orelha e ninguém pudesse ouvir-nos, entre o chiar do barco e o rufar do tambor dos remadores. Então, sois uma tonta, disse brevemente. E uma tonta por tecerdes esse comentário. Observai e aprendei, Maria. Na corte, não há espaço para erros.

Primavera de 1522
Amanhã vou para França e trarei a vossa irmã, Ana, para casa, comigo, disse-me o meu pai nas escadas do Palácio de Westminster.Ela vai ter um lugar na corte, ao lado da Rainha Maria Tudor, quando voltar a Inglaterra. Pensei que ela iria ficar em França, disse. Pensei que iria casar com um conde francês ou alguém semelhante. Ele abanou a cabeça. Temos outros planos para ela. Sabia que era inútil perguntar quais eram os outros planos. Teria de esperar para ver. O meu maior receio era que tivessem um casamento melhor para ela do que o que eu fizera, que eu tivesse de andar atrás dela, enquanto caminhava majestosamente à minha frente, pelo resto da minha vida. Retirai esse ar carrancudo do vosso rosto, disse o meu pai asperamente. De imediato, esbocei o meu sorriso de cortesã. Claro, pai, respondi obedientemente. Ele assentiu e eu baixei-me numa vénia, quando me deixou. Levantei-me e dirigi-me devagar ao quarto de dormir do meu marido. Tinha um pequeno espelho na parede, coloquei-me diante dele e observei o meu reflexo. Vai correr tudo bem, murmurei para mim mesma. Sou uma Bolena, não é algo insignificante, e a minha mãe é uma Howard de nascença, que será uma das famílias mais importantes do país. Sou uma Howard, uma Bolena, mordo o lábio. Mas ela também. Esboço o meu sorriso vazio de cortesã e o belo rosto reflectido devolve-mo. Sou a Bolena mais jovem, mas não a menos importante. Sou casada com William Carey, um homem que ocupa uma posição elevada no favor do rei. Sou a favorita da rainha e a dama de companhia mais nova.
Ninguém pode alterar esta condição. Nem sequer ela me pode tirar a minha posição. Ana e o meu pai foram atrasados pelas tempestades de Primavera e eu dei por mim, infantilmente, a desejar que o barco dela se afundasse e que ela se afogasse. Perante a ideia da morte dela, fui acometida por uma confusa pontada de aflição genuína misturada com júbilo. Quase não poderia haver um mundo para mim sem a Ana, mas o mundo mal chegava para as duas. De qualquer modo, ela chegou em segurança. Vi o meu pai entrar com ela, vindo do cais de desembarque real, pelos caminhos cobertos de gravilha acima, até ao palácio. Mesmo da janela do primeiro andar, olhando para baixo, conseguia ver o balançar do vestido dela, o corte com estilo da sua capa, e fui assolada por um momento de pura inveja quando vi o modo como esta se enrolava em volta dela. Esperei até que estivesse fora do meu campo de visão e depois corri para a minha cadeira, na antecâmara da rainha. Planeei que a primeira vez que ela me visse fosse, muito à-vontade, nas salas repletas de ricas tapeçarias da rainha, e que deveria erguer-me e cumprimentá-la, de uma forma muito adulta e graciosa. Mas quando as portas se abriram e ela entrou, fui dominada por uma onda de alegria súbita, ouvi-me gritar: Ana!, e corri para ela, com a saia a silvar. E a Ana, que entrara de cabeça bem erguida, e o seu arrogante olhar escuro disparando em todas as direcções, deixou, de repente, de ser uma grande dama de quinze anos e abriu os braços para mim. Estais mais alta, disse sem fôlego, com os braços apertados em volta de mim, a bochecha encostada à minha. Trago uns saltos tão altos, senti o odor familiar do seu aroma. Sabonete e essência de água de rosas na sua pele morna, lavanda das suas roupas. Estais bem? Sim. E vós?
Bien sûr! Como é? O casamento? Não é mau. Podemos ter roupas bonitas. E ele? É muito importante. Está sempre com o rei, tem o favor dele. Já fizestes? Sim, há séculos. Doeu? Muito. Ela recuou para analisar a minha expressão. Não muito, disse eu, qualificando. Ele esforça-se por ser gentil. Dá-me sempre vinho. Para dizer a verdade, é tudo bastante desagradável. O seu semblante carregado desvaneceu-se e ela soltou uma gargalhada. Os seus olhos dançavam. Em que é que é desagradável? Ele urina no penico, mesmo à minha frente. Ela desmanchou-se num gemido de risos. Não! Vá lá, meninas, disse o meu pai, surgindo atrás de Ana. Maria, levai Ana e apresentai-a à rainha.
De imediato, voltei-me e conduzia por entre as damas de companhia até onde a rainha estava sentada, erecta na sua cadeira, ao pé da lareira. Ela é exigente, avisei Ana. Não é como em França. Catarina de Aragão analisou Ana com os seus olhos azul-claros e eu senti uma pontada de receio de que ela preferisse a minha irmã a mim». In Philippa Gregory, Duas Irmãs, Um Rei, 2007-2008, Civilização Editora, 2012, ISBN 978-972-262546-3.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT