quinta-feira, 4 de junho de 2020

Decameron. Giovanni Boccaccio (1313-1375). «Portanto, nenhuma repreensão caberá se tomarmos tal decisão; dor, desgosto e talvez morte poderão advir, se não o fizermos»

Cortesia de wikipedia e jdact

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E não só ouvi dizer como também vi várias vezes que esses tais (se é que alguns há), sem fazerem distinção alguma entre coisas honestas e desonestas, movidos somente pelo apetite, sozinhos ou acompanhados, de dia e de noite, fazem tudo o que lhes dê na telha. E não só o fazem as pessoas sem vínculos religiosos, mas também as enclausuradas dos mosteiros, que, convencidas de que aquilo lhes convém e só é proibido às outras, transgredindo as leis da obediência, entregam-se aos prazeres carnais e, imaginando assim salvar-se, tornam-se lascivas e dissolutas. E se assim é (como se vê claramente que é), que fazemos aqui? Que esperamos? Que sonhamos? Porque somos mais preguiçosas e lerdas com nossa saúde do que todo o restante dos cidadãos? Acaso nos consideramos menos importantes que todas as outras? Ou acreditamos que nossa vida está ligada ao corpo com cadeias mais fortes do que as dos outros, de modo que não precisamos nos preocupar com nada que seja capaz de prejudicá-la? Estamos erradas, enganadas; que estupidez a nossa, se acreditarmos nisso! Sempre que nos lembrarmos de quantos e quais homens e mulheres foram vencidos por essa cruel pestilência, encontraremos fortíssimo argumento. Por isso, para não incidirmos, por renitência ou desleixo, naquilo de que podemos escapar de alguma maneira, desde que queiramos (não sei se as senhoras pensarão como eu), creio que seria óptimo se, tal como estamos, tal como muitos antes de nós fizeram e fazem, saíssemos desta cidade; e, fugindo como da morte aos exemplos indecorosos dos outros, fôssemos decorosamente para as propriedades do campo que cada uma de nós tem em grande quantidade; e ali gozássemos da festa, da alegria e do prazer que pudéssemos, sem ultrapassar de modo algum os limites da razão. Ali se ouvem pássaros cantar, veem-se colinas e planícies verdejantes, e os campos cobertos de trigo não ondeiam menos que o mar; árvores há de muitos tipos, e o céu, principalmente, por mais tormentoso que esteja, não nos nega suas belezas eternas, muito mais dignas de admirar do que as muralhas vazias da nossa cidade. Além disso, o ar ali é bem mais fresco, e das coisas todas de que a vida carece nestes tempos a quantidade lá é maior, sendo menor o número de contrariedades. E, embora os lavradores morram tanto quanto aqui os cidadãos, ali a tristeza é menor porque as casas são mais esparsas e há menos habitantes que na cidade. Aqui, por outro lado, se bem percebo, não abandonaremos ninguém; aliás, sem fugir à verdade, podemos dizer que abandonadas fomos nós; porque os nossos, ou por morrerem ou por fugirem da morte, deixaram-nos sozinhas nesta aflição, como se não lhes fôssemos tão próximas. Portanto, nenhuma repreensão caberá se tomarmos tal decisão; dor, desgosto e talvez morte poderão advir, se não o fizermos. Para tanto, quando lhes parecesse melhor, creio que faríamos bem em tomar nossas serviçais e, fazendo-nos acompanhar por todas as coisas necessárias, passarmos um dia num lugar e outro dia em outro, entregues à alegria e à festa que estes tempos podem nos propiciar; e assim permaneceríamos até percebermos (se antes a morte não nos surpreender) que fim o céu destina a estas coisas. E lembrem-se de que é mais conveniente ir embora com decência do que, como ocorre a grande número das outras, ficar sem decência.

As outras senhoras, depois de ouvirem Pampineia, não só louvaram sua sugestão como também desejavam segui-la e já tinham começado a tratar entre si do modo de fazê-lo, como se, levantando-se de seus assentos, quisessem ir já se pondo a caminho. Mas Filomena, que era sensatíssima, disse: senhoras, embora as palavras de Pampineia tenham sido bem pensadas, não será por isso que havemos de fazer tudo correndo, como parece que querem. É bom lembrar que somos todas mulheres, e não há aqui nenhuma que seja tão nova para não saber como as mulheres convivem e se governam sem a previdência de algum homem. Somos volúveis, briguentas, desconfiadas, pusilânimes e medrosas; por isso, duvido muito que este grupo não se dissolva bem mais cedo do que seria necessário e com menos honra para nós, caso não busquemos orientação diferente da nossa; por isso, é bom tomar providências antes de começarmos.
Então Elissa disse: realmente, os homens são cabeças das mulheres, e sem a ordem deles raramente alguma obra nossa chega a bom termo; mas como podemos obter esses homens? Cada uma de nós sabe que a maior parte dos seus morreu, e dos outros que ficaram vivos, uns aqui, outros acolá, sabe-se lá onde, em diferentes companhias vão todos fugindo daquilo de que estamos procurando fugir; e aceitar estranhos não seria conveniente; por isso, se quisermos cuidar de nossa saúde, será bom encontrarmos um modo de nos organizarmos de tal sorte que ao lugar aonde formos em busca de deleite e repouso não sejamos seguidas por contrariedades e escândalos». In Giovanni Boccaccio (1313-1375), Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN 978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN 978-852-542-941-4.
                                         
Cortesia de Ed’Água/L&Pm/JDACT