domingo, 7 de junho de 2020

As Bruxas. Stacy Schiff. «Tencionavam completar a tarefa em novo local e tinham a vantagem de construir do nada uma civilização. Protestantes não conformistas…»

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«Em 1692, a Colónia da Baía de Massachusetts executou por bruxaria catorze mulheres, cinco homens e dois cachorros. A feitiçaria se materializou em Janeiro, o primeiro enforcamento ocorreu em Junho, o último em Setembro. Seguiu-se um rígido silêncio chocado. O que incomodou os sobreviventes não foi a maliciosa prática de bruxaria, mas a desastrada aplicação da justiça. Parece que inocentes foram enforcados, enquanto alguns culpados escaparam. Não houve voto de jamais esquecer; entregar esses nove meses ao olvido parecia a reacção mais adequada, e funcionou durante uma geração. Desde então nós conjurámos Salem, o pesadelo nacional americano, o episódio cruel de tablóide, o capítulo distópico do passado. Ele explode e salta através da história e da literatura dos Estados Unidos.
Ninguém foi queimado na fogueira, nenhuma parteira morreu. O vodu chegou mais tarde, com um historiador do século XIX; o escravo meio negro, com Henry Longfellow; os encantamentos na floresta, com Arthur Miller. A erudição desempenha na história um papel maior que a ignorância. No entanto, é verdade que 55 pessoas confessaram prática de bruxaria e um pastor foi enforcado. Embora nunca saibamos o número exacto dos formalmente acusados de ter maldosa, maliciosa e deleitosamente se envolvido com bruxaria, algo entre 144 e 185 bruxas e bruxos foram citados em 25 aldeias e cidades antes do fim da crise. Há relatos de que mais de setecentas bruxas voaram sobre Massachusetts. Tantos foram os acusados que as testemunhas confundiam seus feiticeiros.
A bruxa mais nova tinha cinco anos, a mais velha quase oitenta. Uma filha acusou a mãe, que por sua vez acusou a mãe, que acusou uma vizinha e um pastor. Uma esposa e uma filha denunciaram o marido e pai. Uma mulher que viajou até Salem para limpar seu nome acabou algemada antes do fim da tarde. Em Andover, a comunidade mais severamente afligida, uma em cada quinze pessoas foi acusada. O pastor mais velho da cidade descobriu que conhecia nada menos que vinte bruxas. Ao longo do episódio vêm à tona várias perguntas que tocam o nervo exposto de nossos medos: quem estava conspirando? É possível ser bruxa sem saber? Alguém estaria a salvo? Como, três gerações depois da fundação, a idealista Colónia da Baía chegou a um lugar tão escuro? As teorias que se propõem explicar os julgamentos de bruxos em Salem são inúmeras: tensões geracionais, sexuais, económicas, eclesiásticas e de classe; hostilidades regionais importadas da Inglaterra; envenenamento alimentar; histeria adolescente; fraude, impostos, conspiração; trauma de ataques indígenas; e feitiçaria em si estão entre as mais razoáveis. As acusações de bruxaria tendem a atingir o pico no final do Inverno. Ao longo dos anos, várias partes desempenharam o papel de vilão. Os moradores de Salem procuravam explicar o que levava um guarda com um mandado de prisão a qual porta. Para eles, o padrão era só ligeiramente mais claro que para nós. Mesmo na época, ficou evidente para alguns que Salem era uma história atrás da qual havia outra história sobre algo completamente diferente. Em trezentos anos, ainda não penetramos nesses nove meses da história de Massachusetts. Se soubéssemos mais sobre Salem poderíamos prestar-lhe menos atenção.
A população da Nova Inglaterra em 1692 caberia no actual Yankee Stadium. Praticamente todos eram puritanos. Tendo sofrido por sua fé, aquelas famílias viajaram para a América do Norte a fim de exercer a sua crença com mais pureza e menos perigo do que no país de onde vinham, como disse um pastor no auge da crise. Eles consideravam incompleta a Reforma, insuficientemente pura a Igreja da Inglaterra. Tencionavam completar a tarefa em novo local e tinham a vantagem de construir do nada uma civilização. Protestantes não conformistas, eles eram duplamente dissidentes. Isso não os tornava pessoas bem-aceitas, pois tendiam a criar cisões e facções. Como qualquer povo oprimido, se definiam por aquilo que os ofendia, o que daria à Nova Inglaterra um sabor destemido e, como já se afirmou, levaria à independência dos Estados Unidos. Calvinistas rigorosos tinham percorrido uma grande distância para rezar como quisessem e eram intolerantes com os diferentes. Eram ardorosos, incuravelmente lógicos, de uma cultura tão homogénea como jamais existiu naquele continente. Se havia algum livro nas casas, este era a Bíblia. Os americanos dos primórdios respiravam, sonhavam, disciplinavam e alucinavam com base em imagens e textos bíblicos». In Stacy Schiff, As Bruxas, Editora Marcador, 2017, ISBN 978-989-754-310-4.

Cortesia de EMarcador/JDACT