terça-feira, 9 de junho de 2020

As Bruxas. Stacy Schiff. «Mulheres são as vilãs nos contos de fadas, qual o significado de sentar no próprio emblema do humilhante trabalho doméstico e sair voando?»

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«(…) O Novo Mundo era um plágio do Velho, mas com algumas mudanças cruciais. Estendendo-se de Martha’s Vineyard à Nova Escócia, e incorporando partes dos actuais Rhode Island, Connecticut, New Hampshire e Maine, a comunidade bíblica se empoleirava à margem da natureza selvagem. Desde o primeiro momento ela se batia com outra matéria-prima americana: o selvagem diabólico, o terror moreno ali no quintal. Mesmo os postos menos isolados da colónia sentiam a própria fragilidade. Os americanos de então viviam não apenas na fronteira, mas fora do tempo. Os residentes da baía de Massachusetts nem sempre sabiam quem ocupava o trono ao qual deviam obediência; em 1692 não conheciam os termos do seu governo e tinham passado três anos sem governo algum, quando uma nova Carta chegou de navio. Durante três meses de 1691 não tinham certeza do ano em que viviam, porque o papa aprovou o calendário gregoriano, mas a Nova Inglaterra rejeitou-o, continuando a datar o começo do ano em 25 de Março. (Quando as bruxas atacaram as suas primeiras vítimas na aldeia de Salem, era 1691 na Nova Inglaterra e 1692 na Europa).
Em assentamentos isolados, em casas sombrias, os moradores da Nova Inglaterra viviam no escuro, onde vicejam o sagrado e o oculto. Seus medos e caprichos eram pouco diferentes dos nossos. Mas o escuro deles era um escuro diferente. O céu sobre a Nova Inglaterra era de um negro bíblico, tão negro que era difícil seguir uma trilha à noite. Em toda a Nova Inglaterra seria difícil encontrar mais que umas poucas almas para quem o sobrenatural não fizesse parte da cultura, assim como o próprio diabo. Um ano depois de passada a crise de bruxaria, Cotton Mather, um dos homens mais cultos dos Estados Unidos, visitou Salem. Ele perdeu as anotações do seu sermão, que apareceram um mês depois, espalhadas nas ruas de uma cidade vizinha. Concluiu que agentes diabólicos as tinham roubado. Não se duvidava da realidade da bruxaria, como também não se duvidava da verdade literal da Bíblia. Ao lado da fé, a bruxaria servia a um propósito útil. Aquilo que irritava, confundia, humilhava, tudo se dissolvia no seu caldeirão. Para algumas das coisas que assolavam o habitante da Nova Inglaterra do século XVII temos explicações modernas. Para outras, não. O mundo do século XVII parecia cheio de acontecimentos inexplicáveis, não muito diferentes daqueles do mundo moderno automatizado.
Mesmo aqueles que não ocupavam o alto plano espiritual dos puritanos eram susceptíveis ao que Mather chamou de doenças da perplexidade. Antes e depois dos julgamentos, a Nova Inglaterra se banqueteava com histórias sensacionais de mulheres ousadas que demonstravam fortaleza sob ataques indígenas. Essas narrativas de cativeiro forneceram algo como um padrão para a bruxaria. Salem é em parte a história do que acontece quando um conjunto de perguntas sem respostas encontra um conjunto de respostas inquestionáveis. Rica em seres humanos que mudam de forma, voos fantásticos, madrastas más e feno enfeitiçado, a crise de Salem é parecida com outro gênero do século XVII: o conto de fadas. Salem toca naquilo que é irreal, mas de forma alguma mentiroso; no seu cerne estão desejos frustrados e ansiedades não expressas, pulsões sexuais subjacentes e terror rude. O episódio se desenrola naquele espaço fértil de sonho entre o fantástico e o absurdo. Houve julgamentos de bruxas antes na Nova Inglaterra, mas não precipitados por uma coorte de meninas adolescentes e pré-adolescentes enfeitiçadas. Também como um conto de fadas, Salem é uma história em que as mulheres, mulheres determinadas e mulheres medrosas, subservientes, matronas correctas e adolescentes transviadas, desempenham papel decisivo. Um grupo de meninas muito jovens, privadas de direitos, desencadeou a crise, revelando forças que ninguém podia conter e que ainda hoje espantam, que podem ou não ter algo a ver com a razão para se transformar uma história de mulheres em perigo numa história de mulheres perigosas.
Mulheres são as vilãs nos contos de fadas, qual o significado de sentar no próprio emblema do humilhante trabalho doméstico e sair voando? Mas esses contos são também o território da juventude. Em todos os níveis, a crise de Salem está ligada à adolescência, essa idade imoderada e vulnerável na qual saltamos a fronteira entre o racional e o irracional. A crise começou com duas meninas pré-pubescentes e logo passou a envolver um grupo de adolescentes consideradas enfeitiçadas por parte de indivíduos que a maioria delas nunca havia visto. As meninas vinham de uma aldeia que clamava por autonomia. Durante anos a Coroa tentara impor as suas autoridades à Nova Inglaterra, e as últimas delas haviam sido desbancadas pelos cidadãos importantes de Massachusetts, entre os quais se encontravam quase todos os juízes de bruxaria. Eles tinham toda a razão de solicitar protecção da Inglaterra contra indígenas saqueadores e franceses astutos. Mas, embora lamentassem sua vulnerabilidade, os colonos não aceitavam supervisão. Desde o começo se manifestaram contra a interferência, prometendo rejeitá-la quando ocorresse e se sentindo humilhados quando ocorreu. A relação com a terra-mãe evoluíra para uma querela constante; durante algum tempo as pessoas que deviam proteger os colonos pareciam persegui-los. As autoridades de Massachusetts também sofriam de outra ansiedade que viria a desempenhar o seu papel em 1692: toda vez que olhavam para trás, com admiração pelos homens que haviam fundado sua comunidade temente a Deus, cada vez que louvavam aquela grande geração, eles próprios ficavam um pouquinho menores». In Stacy Schiff, As Bruxas, Editora Marcador, 2017, ISBN 978-989-754-310-4.

Cortesia de EMarcador/JDACT