quarta-feira, 17 de junho de 2020

O Tio Goriot Honoré de Balzac. «Lidos os secretos infortúnios do tio Goriot, jantareis com apetite, lançando a vossa insensibilidade à conta do autor, malsinando-o de exagero, acusando-o de poesia»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A senhora Vauquer, em solteira de Conflans, mantém, há quarenta anos, uma pensão em Paris na Rua Nova de Santa Genoveva, entre o bairro latino e o arrabalde de Saint-Marceau. Essa pensão, conhecida pelo nome de Casa Vauquer, aceita homens e mulheres, novos e velhos, e nunca as más línguas tiveram que lhe dizer. Verdade seja que em muitos anos não tinha lá posto os pés uma rapariga; e para que algum rapaz lá vivesse era preciso que a família lhe desse bem parca mesada. Mas em 1819, quando este drama começa, vivia lá uma pobre rapariguinha. Por mais desacreditada que esteja a palavra drama pela maneira iníqua e abusiva como tem sido usada nestes tempos de literatura dolorosa, é preciso empregá-la aqui; não porque esta história seja dramática no sentido verdadeiro da palavra, mas porque, terminada ela, talvez por aí haja suas lágrimas. Será ela compreendida fora de Paris? É caso para duvidar. As particularidades desta cena, repleta de observações e de cores locais, só podem ser apreciadas entre Montmartre e Montrouge, nesse ilustre vale de entulho sempre a cair e de sarjetas de lama negra; vale cheio de sofrimentos reais, de alegrias muitas vezes fingidas, e tão terrivelmente revolto que só algo de exorbitante poderá fazê-lo sofrer uma emoção mais duradoura. Nele se encontram, aqui ou além, dores que a aglomeração dos vícios e das virtudes faz grandes e solenes; ao seu aspecto, os egoísmos e os interesses param, compadecem-se; a impressão recebida, porém, é como um fruto saboroso que num ai se devora. O carro da civilização, semelhante ao do ídolo de Jaggernat, somente travado por algum coração menos fácil de esmagar do que os outros, e que lhe calça a roda, num momento o despedaça e continua a sua marcha gloriosa. Assim fareis vós, que, com este livro em vossas alvas mãos, vos refastelais numa boa poltrona, pensando: talvez isto me entretenha! Lidos os secretos infortúnios do tio Goriot, jantareis com apetite, lançando a vossa insensibilidade à conta do autor, malsinando-o de exagero, acusando-o de poesia. Pois saibam que este drama não é uma ficção nem um romance. All is true; é tão verdadeiro que todos podem reconhecer os seus elementos em si, talvez no seu próprio coração.
O prédio dessa pensão burguesa pertence à senhora Vauquer. Fica situado ao fundo da Rua Nova de Santa Genoveva, no ponto em que o terreno desce para a Rua de 1'Arbalète por uma ladeira tão íngreme que só bem raro os cavalos a sobem ou descem. Esta circunstância é propícia ao silêncio que reina nessas ruas entaladas entre o zimbório do Val-de-Grâce e o zimbório do Panteão, dois monumentos que transformam as condições da atmosfera introduzindo-lhe uns tons amarelos, escurentando tudo com a sombra severa que as suas cúpulas projectam. As calçadas são enxutas; as sarjetas não têm lama nem água; a erva cresce ao longo dos muros. O homem mais indiferente que ali passe põe-se triste como todos os transeuntes; ali, o rodar de uma carruagem é um grande acontecimento; as casas tão tristonhas; os muros tresandam a prisão. Um parisiense que por ali se perdesse apenas veria casas de hóspedes ou asilos, miséria ou tédio, velhice a morrer ou mocidade forçada a trabalhar. Nenhum bairro de Paris é mais horrível, nem também, diga-se a verdade, mais desconhecido. Principalmente a Rua Nova de Santa Genoveva é como que uma moldura de bronze, única, própria para esta narrativa, a cujo preparo todas as ideias escuras e todas as ideias graves são poucas, como quando o viajante desce às Catacumbas, a ver diminuir de degrau para degrau a luz do dia e tornar-se cava de momento para momento a voz do guia. Comparação verdadeira. Quem pode decidir o que será mais horrível de ver, corações mirrados ou crânios vazios?...
A frontaria da casa deita para um jardinzito, de modo a formar ângulo recto com a Rua Nova de Santa Genoveva, de onde se lhe vê todo o fundo. Ao comprido da frontaria, entre a casa e o jardim, corre uma calha empedrada bastante larga, tendo à frente uma ruazinha ensaibrada, com gerânios, cevadilha e romãzeira em grandes vasos de louça azul e branca. Entra-se para aqui por uma porta-travessa com uma tabuleta em que se lê: Pensão Vauquer e, por baixo, Casa de hóspedes para os dois sexos e outros. Durante o dia, uma porta com ralos e uma campainha deixa enxergar ao fim do empedrado, na parede oposta à rua, um nicho a fingir, de mármore verde, pintado por um artista do bairro. Na concavidade que essa pintura finge, eleva-se uma estátua representando o Amor. Pelo verniz escoriado que a cobre, os amadores de símbolos porventura descobririam nela um mito do amor parisiense que a poucos passos dali se cura. No soco, uma inscrição meia apagada lembra a época dessa decoração pelo entusiasmo que manifesta por Voltaire, de volta a Paris em 1777:

Qui que tu sois, voici ton maitre,
II 1'est, le fut, ou le doit être.

Ao cair da noite, a porta de ralos é substituída por uma porta maciça. O jardinzinho, do comprimento da frontaria, é limitado pelo muro que deita para a rua e pelo da casa contígua, da qual pende um manto de heras que a esconde toda, atraindo a atenção de quem passa para um efeito muito pitoresco em Paris. Esses muros são acompanhados de latadas cujos frutos enfezadinhos, cheios de pó, são todos os anos objecto dos receios da senhora Vauquer e das suas conversas com os hóspedes. Ladeia cada um desses muros uma ruazinha que conduz a um coberto de tílias. Entre as duas ruas laterais há um canteiro de alcachofras, flanqueado de árvores de fruto e orlado de azedas, de alfaces ou de salsa. Debaixo das tílias, uma mesa redonda, pintada de verde e rodeada de cadeiras. Aí, em dias de Verão, os hóspedes mais abonados vão tomar o seu café, saboreando-o por um calor de rachar. A frontaria, de três andares e águas-furtadas, é de alvenaria, pintada com essa tinta amarela que dá um carácter ignóbil a quase todas as casas de Paris». In Honoré de Balzac, O Tio Goriot, 1835, Círculo de Leitores, 1991, ISBN 972-420-210-0.

Cortesia de CLeitores/JDACT