Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Esses são os meus
desconhecidos, ao menos por enquanto. Estão instalados muito comodamente na
vida, ao passo que eu fico neurasténico diante de uma folhinha com o seu Fevereiro
consagrado a Goya.
Esta tarde, quando eu vinha do
escritório, um bêbado me deteve na rua. Não protestou contra o governo, nem
disse que ele e eu éramos irmãos, nem tocou em nenhum dos incontáveis temas do pique
universal. Era um bêbado estranho, com uma luz especial nos olhos. Segurou meu
braço e disse, quase apoiando-se em mim: sabe o que lhe acontece? Que você não
vai a lugar nenhum. Outro sujeito que passou nesse instante me fitou com uma
alegre dose de compreensão e até me dedicou uma piscadela de
solidariedade. Mas já faz quatro
horas que estou intranquilo, como se realmente não me
dirigisse
a lugar nenhum e só agora o percebesse.
Quando eu me aposentar, creio que
não escreverei mais este diário, porque então, sem dúvida, me acontecerão muito
menos coisas do que agora, e vou achar insuportável me sentir tão vazio e,
ainda por cima, deixar disso um registo por escrito. Quando eu me aposentar,
talvez o melhor seja me abandonar ao ócio, a uma espécie de modorra compensatória,
afim de que os nervos, os músculos, a energia aos poucos se relaxem e se
acostumem a morrer bem. Mas não. Há momentos em que tenho e mantenho a luxuosa
esperança de que o ócio seja algo pleno, rico, a última oportunidade de encontrar
a mim mesmo. E isso, sim, valeria a pena anotar.
Hoje almocei sozinho, no Centro.
Quando vinha pela Mercedes, cruzei com um sujeito de castanho. Primeiro, ele
esboçou uma saudação. Devo tê-lo olhado com curiosidade, porque o homem se
deteve e, com alguma vacilação, estendeu-me a mão. Não era uma cara desconhecida.
Era algo assim como a caricatura de alguém que eu, em outros tempos, tivesse
visto com frequência. Também estendi a minha, murmurando desculpas e de certa
forma confessando minha perplexidade. Martín Santomé?, perguntou ele, mostrando
no sorriso uma dentadura devastada. Claro, Martín Santomé, mas meu desconcerto
era cada vez maior. Não se lembra da rua Brandzen? Bom, não muito. Faz bem uns
trinta anos desde aquela época, e não sou famoso pela minha memória.
Naturalmente,
quando solteiro morei na rua Brandzen, mas, ainda que me moessem de pancada, não
poderia dizer como era a fachada da casa, quantas sacadas tinha, quem morava ao
lado. E do café da rua Defensa? Aí, sim, a névoa se dissipou um pouco e por um
instante vi a barriga, com cinturão largo, do galego Álvarez. Claro, claro!, exclamei
iluminado. Bem, eu sou Mario Vignale. Mario Vignale? Não me lembro, juro que não
me lembro. Mas não tive coragem de confessar. O sujeito parecia tão entusiasmado
com o encontro... Então respondi que sim, que me desculpasse, que eu era um péssimo
fisionomista, que na semana passada me encontrara com um primo e não o tinha
reconhecido (mentira). Naturalmente, era obrigatório tomarmos um café, de modo que
ele me arruinou a sesta do sábado. Duas horas e 15 minutos. Obstinou-se em me reconstituir
pormenores, em me convencer de que havia participado da minha vida. Eu me
lembro até da tortilha de alcachofra que a sua velha fazia. Sensacional. Eu ia
sempre às onze e meia, esperando que ela me convidasse para almoçar. E soltou
uma bruta gargalhada. Sempre?, perguntei, ainda desconfiado. Então ele sofreu
um acesso de vergonha: bom, fui umas três ou quatro vezes. Afinal, qual era a
porção de verdade? E a sua velha, vai bem? Morreu há 15 anos. Car… E o seu
velho? Morreu há dois anos, em Tacuarembó. Estava morando na casa da minha tia
Leonor. Devia estar idoso. Claro que ele devia estar idoso. Deus do céu, que
chatice. Só então ele formulou a pergunta mais lógica: e você, acabou se
casando com Isabel? Sim, e tenho três filhos, respondi, encurtando o caminho.
Ele tem cinco. Que sorte. E como vai Isabel? Sempre bonita? Morreu, respondi,
fazendo a cara mais imperscrutável do meu repertório. A palavra soou como um
disparo e ele, ainda bem, ficou desconcertado. Apressou-se em terminar o
terceiro café e, em seguida, olhou o relógio. Há uma espécie de reflexo automático
nisso de falar da morte e em seguida olhar o relógio». In Mario Bennedetti, A Trégua,
Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.
Cortesia
de ECdeFerro/JDACT