sábado, 20 de junho de 2020

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Como, não teremos alho-porro hoje?, perguntou um dia Bourru, irritado. E Burot, escandalizado: não teremos alho-porro? Enquanto o garçom se desculpava…»

Cortesia de wikipedia e jdact

(…) Se os literatos e os artistas sempre se sentavam em torno de mesas comuns, os homens de ciência almoçavam sozinhos, como eu. Porém, depois de ter tido um vizinho de mesa por algumas vezes, você acaba travando conhecimento com ele. Meu primeiro conhecido foi o doutor Du Maurier, indivíduo odiosíssimo a ponto de se perguntar como podia um psiquiatra infundir confiança aos seus pacientes exibindo uma cara tão desagradável. Um rosto invejoso e ressentido de quem se considera em eterno segundo lugar. De facto, ele dirigia uma pequena clínica para doentes dos nervos em Vincennes, mas sabia muitíssimo bem que sua instituição de tratamento jamais gozaria da fama e das rendas da clínica do doutor Blanche, mais célebre, embora Du Maurier murmurasse sarcástico que, trinta anos antes, ali se internara um certo Nerval segundo ele, poeta de algum mérito que os cuidados da famosíssima clínica Blanche levaram ao suicídio. Outros dois comensais com quem instaurei boas relações eram os doutores Bourru e Burot, dois tipos singulares que pareciam irmãos gémeos, vestidos sempre de preto, a roupa quase com o mesmo corte, os mesmos bigodes negros e queixo glabro, com o colarinho sempre um tanto sujo, fatalmente, porque em Paris estavam em trânsito, dado que exerciam na Ecole de Médecine de Rochefort e vinham à capital somente por alguns dias a cada mês, a fim de acompanhar as experiências de Charcot.
Como, não teremos alho-porro hoje?, perguntou um dia Bourru, irritado. E Burot, escandalizado: não teremos alho-porro? Enquanto o garçom se desculpava, eu intervim, da mesa vizinha: mas eles têm excelentes barbas-de-bode. Eu até as prefiro ao porro. Depois cantarolei, sorrindo: tous les légumes au clair de lune étaient en train de samuser... Et les passants les regardaient. Les cornichons dansaient en rond, les salsifis dansaient sans bruit...
Convencidos, os dois comensais escolheram o salsifis. E dali começou uma convivência cordial, por dois dias ao mês. Veja, monsieur Simonini, explicava-me Bourru, o doutor Charcot está estudando a fundo a histeria, uma forma de nevrose que se manifesta por várias reacções psicomotoras, sensoriais e vegetativas. No passado, era considerada fenómeno exclusivamente feminino, resultante de distúrbios da função uterina, mas Charcot intuiu que as manifestações histéricas são igualmente difundidas nos dois sexos e podem incluir paralisia, epilepsia, cegueira ou surdez, dificuldade de respirar, falar, engolir. O colega, intervinha Burot, ainda não disse que Charcot pretende ter elaborado uma terapia que cura os sintomas dessa enfermidade. Eu iria chegar lá, respondia Bourru, melindrado.
Charcot escolheu o caminho do hipnotismo, que até ontem era matéria para charlatães como Mesmer. O s pacientes, submetidos à hipnose, deveriam evocar os episódios traumáticos que estão na origem da histeria e sarar ao tomarem consciência deles. E saram? Esse é o ponto, monsieur Simonini, dizia Bourru. Para nós, o que muitas vezes ocorre na Salpêtrière mais parece teatro do que clínica psiquiátrica. Entenda bem, não estou pondo em questão as infalíveis qualidades diagnósticas do Mestre...» In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT