terça-feira, 16 de junho de 2020

Trópico de Câncer. Henry Miller. «Que diz você? Meu sonho de 14 de Novembro do ano passado? Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Proibido durante cerca de 30 anos nos Estados Unidos e no Reino Unido, Trópico de Câncer foi publicado originalmente em 1934. Eleito um clássico de literatura erótica desconstruiu tabus e desmistificou convenções no seu pouco apologético caminho em busca do desejo. Muitas vezes considerado pornográfico e obsceno, Trópico de Câncer evidencia uma sexualidade despojada, longe de amarras e preconceitos, sendo auto-designado pelo escritor como um insulto prolongado, um escarro no rosto da Arte. Não somente a Arte se pode ter sentido beliscada como a generalidade dos homens do seu tempo, presos às regras ditadas pela sociedade e que viam em Trópico de Câncer um desafiar dos valores impostos e aceites pela sociedade. A linguagem sem freio, os temas invariavelmente de cama e o retrato das personagens pouco ortodoxo, muitas vezes ridicularizadas por uma crítica contundente e sem moral, projectaram Miller como alguém à frente do seu tempo, porventura um pouco desajustado, facto esse que o levou a viver em Paris, ex-libris das capitais, que considerava um local onde se mesclam as cidades da Europa e da América Central, e onde o escritor vivia sem recursos ou dinheiro. Miller auto-designava-se um artista que se deixava conduzir à mercê das contrariedades e das alegrias da vida. A primeira impressão de Trópico de Câncer foi aliás financiada por Anaïs Nin, sua amante, que acreditava nos seus desígnios. Narrado na primeira pessoa, o livro relata ficticiamente as aventuras de Miller entre prostitutas, proxenetas, pintores sem dinheiro e escritores do submundo parisiense. Controverso e muito peculiar, Henry Miller ergue um hino ao mundo da sexualidade e da liberdade nas suas formas extremas e garante incondicionalmente um lugar no panteão dos maiores escritores mundiais do século XX». In Sinopse

«Estou vivendo na villa Borghese. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos. Ontem à noite, Bóris descobriu que estava com … Tive de raspar-lhe as axilas e mesmo depois disso a coceira não passou. Como pode alguém adquirir … num lugar bonito como este? Mas isso não tem importância. Talvez nunca nos tivéssemos conhecido tão intimamente, Bóris e eu, se não fossem os … Bóris acaba de oferecer-me uma síntese de suas ideias. É um profeta meteorológico. O tempo continuará ruim, diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o Tempo, mas a Ausência de Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direcção à prisão da morte. O tempo não vai mudar. Estamos no Outono do meu segundo ano em Paris. Mandaram-me para cá por uma razão que ainda não consegui compreender. Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.
E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de carácter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza..., e do que mais quiserem. Vou cantar um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo... Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmónica ou viola. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.
É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito. Estamos em vinte e tantos de Outubro. Não acompanho mais as datas. Que diz você? Meu sonho de 14 de Novembro do ano passado? Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está-se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo.
O mundo é um câncer que está comendo a si próprio... Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita. Você, Tânia, é o meu caos.
É por isso que canto. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Eu ainda estou vivo, dando pontapés no seu útero, uma realidade sobre a qual escrever. Adormecendo. A fisiologia do amor. A baleia com seu p… de um metro e oitenta, em repouso. O morcego, p… libre. Animais com um osso no p… Daí, um osso espetado... Felizmente, diz Gourmont, a estrutura óssea está perdida no homem». In Henry Miller, Trópico de Câncer, 1934, Editorial Presença, 2008, ISBN 978-972-234-012-0.

Cortesia de EPresença/JDACT