sábado, 27 de junho de 2020

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Tão difícil como vencer a subida do Monte dei Perdon era descer os fortes declives escorregadios e pedregosos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Há 403 anos...?! A mesma cerimónia todos os dias?!... Sim. Antes, nós dávamos a volta na catedral, do lado de fora, mas a cidade cresceu e hoje rezamos o Terço aqui dentro. Era um privilégio usufruir da beleza daquele templo e participar de cerimónias centenárias como a que assistira, mas iam fechar a igreja e ele teve de sair. O anoitecer estava chegando e estava cansado. Saiu com a sensação de que 403 anos iriam aumentar o peso da sua mochila. Caminhou até à rua do encierro. Todos os anos, durante as festas de São Firmino, no período de 6 a 24 de Julho, a rua do encierro é palco da famosa corrida de Pamplona, quando pessoas arriscam a vida correndo um trajecto de 800 metros na frente de touros enfurecidos.
Não sabia porque a procissão na catedral não saía da sua cabeça, quando passou em frente de uma livraria. Hesitou uns minutos e entrou. Os livros estavam dispostos por assunto e depois de várias perguntas ao vendedor, comprou um opúsculo sobre as heresias da Idade Média.

No dia seguinte, levantou-se bem cedo porque, embora até Puente la Reina fosse apenas 23,5 quilómetros, era um trecho difícil. Tão difícil como vencer a subida do Monte dei Perdon era descer os fortes declives escorregadios e pedregosos.
Uma das lendas mais bonitas do Caminho teve origem na subida do Perdon. Naquela época, os povoados eram muito distantes uns dos outros, e um peregrino se viu sem água na subida do morro. Já não aguentava mais seguir em frente e se sentia desfalecer sob o sol inclemente. Rezava para que Deus o ajudasse a chegar a uma fonte ou que alguém aparecesse com um pouco de água. Estava esgotado, sem forças, quando o Diabo apareceu diante dele e prometeu que, se renegasse à sua fé e desistisse da peregrinação, uma fonte de água cristalina e fresca ia jorrar daquele lugar. A tentação era grande e o peregrino já quase não aguentava mais o sofrimento, mas resistiu e não aceitou. O Diabo usou de todos os recursos para convencê-lo, mas o peregrino respondia que preferia morrer de sede a renegar a sua fé.
O Diabo ficou furioso e desapareceu no meio de uma explosão, soltando um forte cheiro de enxofre. Depois que o Diabo se foi, o peregrino agradeceu a Deus por ter resistido à tentação. Nesse instante, outro peregrino se aproximou e lhe mostrou a fonte. Sedento e quase sem conseguir andar, arrastou-se até ao lugar e viu a água fresca jorrando de uma pedra. Depois de matar a sede, agradeceu o bondoso peregrino, que sorriu para ele e seguiu o Caminho.
Dias depois, chegou a Compostela. Entrou na igreja para assistir à Missa dos Peregrinos e quando olhou para a imagem de São Tiago reconheceu o peregrino que lhe mostrara a fonte de água. Fora o próprio santo que lhe aparecera, porque não renegara a sua fé e não desistira da peregrinação. A fonte passou a ser conhecida como Fuente del Reniego, Fonte da Renegação.
Maurício também estava cansado e com sede, mas tinha água suficiente. Sabia que a Fuente del Reniego havia secado e o Caminho tinha às vezes longas distâncias, por isso tomava precauções para evitar a fome e a sede em trechos desabitados e longos. Mas o lugar parecia mesmo amaldiçoado e o Diabo estava ali esperando por ele, como se quisesse testá-lo também.
Encostado no barranco, perto de onde antes era a fonte, um peregrino aproveitava a sombra para descansar. E o cheiro forte do enxofre que o Diabo deixara na lenda entrou pela sua alma, assim que o reconheceu. Aproximou-se. O peregrino continuou sentado, sem nada dizer, e o olhava com um sorriso inexpressivo. Maurício chegou mais perto, tirou a mochila das costas, colocou-a no chão e se sentou.
Tinha mesmo a impressão de que ia encontrá-lo pelo Caminho. Mas o senhor escolheu um lugar apropriado para a gente falar do Diabo. Entendi que havia um recado, quando me mandou verificar se o assassino havia judiado da menina. O perfil do assassino. Lembra-se da sua preocupação?
Maurício respirou fundo e respondeu com outras perguntas: O assassino não mexeu na menina? Nem tentou? Descobriram alguma pista? Não há sinais de violência sexual. Nem mesmo a calcinha dela foi tirada». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT