segunda-feira, 29 de junho de 2020

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Parecia que estava seguindo ou fugindo de alguma coisa. Adquiri o hábito de observar detalhes. Ele reconheceu a bandeira brasileira no seu gorro, imagino»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Embora já esperasse por essa resposta, a informação o assustou. Baixou a cabeça e o cheiro de enxofre espalhou-se por toda a paisagem. Passaram-se uns minutos e o inspector mostrou-lhe uma foto da garota. Esta fotografia foi tirada em Majorca, no mês de Julho, onde ela estava de férias com os pais. Uma menina bonita, de biquíni, com o corpo já salientando as curvas da adolescência e cheia de sonhos na sua face sorridente, fazia pose, perto de uma barraca fincada na areia da praia. Só damos valor ao repouso quando estamos cansados. Maurício tirou o gorro de pano verde e amarelo da cabeça e enxugou o rosto com o lenço. Encostado no barranco, sem a mochila nas costas, que vinha carregando como se fosse uma corcunda, olhava para aqueles campos amarelos de trigo já ceifado, sem saber no que pensar. Ao longe, os Pirenéus exibiam seus majestosos picos contra o horizonte, mas o detective não estava interessado em paisagem. Sua percepção no caso é que o assassino pode ter uma missão, pois um tipo violento como ele somente conteria os seus instintos animalescos em relação à menina por alguma razão superior. Se ele ficasse ali para satisfazer seus instintos sexuais, poderia surgir alguém e prejudicar a sua missão. Acho que foi esse o seu raciocínio em Roncesvalles. Maurício não respondeu. Olhava para as elevações no meio do vale, onde pequenos vilarejos pareciam se esconder à sombra de suas imensas igrejas.
Podemos ir conversando, se aceitar minha companhia. Admito que o comandante não gostaria de eu estar aqui, trocando ideias com um peregrino estrangeiro sobre matéria de investigação criminal em curso, mas o seu raciocínio me trouxe questionamentos que não posso desprezar. Havia qualquer coisa de misterioso naquele encontro com o detective, que parecia ao mesmo tempo agradecido e desconfiado. Era melhor tê-lo por perto e conseguir informações.
Caminharam até ao alto do morro, onde uma linha de grandes torres de ventiladores gigantes para a geração de energia eólica, fora instalada no espigão do Monte del Perdon, e ali ficaram como se fossem Quixote e Sancho Pança se preparando para investir contra moinhos de vento. Um estranho monumento, com peregrinos dispostos como se fossem cavaleiros andantes, justificava a inscrição que dizia: o caminho do vento se cruza com o caminho das estrelas. O policial retomou o assunto que o levara àquele encontro: tenho a impressão de que alguma coisa mais o incomoda. Em Roncesvalles, o senhor desenvolveu um raciocínio de quem não estava apenas dando uma opinião. Já temos três homicídios, e a sua conclusão de que o assassino deu o golpe na perna traseira do burrico foi comprovada. Chegou mesmo a adivinhar que era a perna direita. Não estava orgulhoso com os elogios. Um novo perigo, ainda desconhecido, parecia estar surgindo diante dele. Talvez fosse mais prudente cooperar com o Chefe de Investigação do Distrito de Pamplona. Era previsível que ele queria que o burrico caísse no precipício. O animal era muito pesado para um homem sozinho erguê-lo ou mesmo arrastá-lo. Com certeza levantou os corpos do homem e da menina e os jogou no precipício, mas não podia fazer isso com o burrico. Por outro lado, não podia deixar o burrico ali, com a perna cortada porque era arriscado, então ele preparou as coisas de modo que o burrico se arrastasse barranco abaixo. O calor era abrandado por uma brisa fresca que descia o morro e corria pelos prados cultivados.
Ia saindo de Saint-Jean-Pied-de-Port quando ouvi alguém dizer: brasileno, no? Sei que o Caminho é cheio de brasileiros, mas de qualquer forma registei o facto. Depois, uma mulher subiu o morro, no mesmo ritmo que eu, e estava quase morta de cansaço quando paramos. Parecia que estava seguindo ou fugindo de alguma coisa. Adquiri o hábito de observar detalhes. Ele reconheceu a bandeira brasileira no seu gorro, imagino.
A questão é que a bandeira estava do lado oposto, e é um emblema pequeno, difícil de ser identificado na distância em que o espanhol estava, como pode ver. E tirou o gorro da cabeça, passando-o para o detective. Tem razão. Então, em sua opinião, ele já o estava esperando. Mas, porquê? Não sei se era por mim que esperava ou por outra pessoa, mas estava prevenido. Seria interessante saber o que esse padre fez naquele dia. Se, por exemplo, ele teve de visitar algum doente ou executar alguma tarefa que o fez sair da cidade e percorrer uma parte do Caminho. Não pode ter ido a lugar distante. Acredito que ele possa ter visto ou ouvido alguma coisa e o assassino o seguiu para saber quem era aquele intruso. Por acaso está sugerindo que o padre não se afastara muito de Roncesvalles porque, se o tivesse feito teria sido morto fora da cidade? É um raciocínio interessante.
Não era conveniente falar, por enquanto, sobre as suas descobertas com o ferreiro em Zubiri. Estava se intrometendo numa investigação policial em território estrangeiro e já cometera o erro de sugerir que o espanhol estava esperando por ele. Por outro lado, já estava sendo vigiado, como indicava o aparecimento desse detective, e era melhor mostrar cooperação». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT