quinta-feira, 18 de junho de 2020

Os Sete Pilares da Sabedoria. T.E. Lawrence. «Quando a emoção atingia estes píncaros, a mente embotava-se; e a memória fazia-se branca, até que as circunstâncias voltassem a ser vulgares outra vez»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) À medida que passava o tempo, crescia a nossa necessidade de lutar em prol do ideal, a ponto de já não admitir discussão, e de cavalgar de espora e rédea solta sobre as nossas dúvidas. De bom ou de mau grado, transformou-se afinal em fé. Entregamo-nos à sua escravidão, algemamo-nos à sua malta, curvamos o pescoço, para servir a sua santidade com a máxima devoção. A mentalidade dos escravos humanos comuns é terrível, porque eles perderam apenas o mundo, e nós entregamos não somente o corpo, mas também a alma, à voracidade aniquiladora da vitória. Por nossos próprios actos, fomos esvaziados de moralidade, de vontade e de responsabilidade, como folhas mortas ao vento.
O batalhar perene eliminou de nós todo o cuidado com as nossas vidas, e também com a dos outros. Trazíamos cordas ao redor do pescoço, e, sobre nossas cabeças, pesavam preços que bem mostravam que o inimigo premeditava submeter-nos a horripilantes torturas, se fôssemos aprisionados. Todos os dias, um de nós falecia; e os que prosseguiam vivendo sabiam que eram títeres conscientes no palco de Deus: com efeito, nosso fado era impiedoso, absolutamente impiedoso, enquanto os nossos pés feridos pudessem vacilar para a frente, na estrada. Os fracos invejavam os que se haviam cansado o bastante para morrer; porque o êxito parecia remoto, e o fracasso, próximo e certo, senão total, afigurava-se-nos como sendo uma libertação da fadiga. Vivíamos sempre ou em plena tensão, ou em pleno relaxamento de nervos, ora na crista, ora no cavado das vagas do sentimento. Esta impotência era amarga para nós, e fazia-nos viver apenas para o horizonte à vista, indiferentes às contrariedades que infligíamos ou que suportávamos, porque a sensação física se mostrava miseravelmente transitória. Furacões de crueldade, perversões e cobiças passavam de leve pela superfície, sem nos perturbar; porque as leis morais, que pareciam constituir, outrora, barreiras contra tais incidentes disparatados, deviam ser, então, palavras ainda mais débeis do que as sensações. Viemos a saber que havia angústias excessivamente agudas, mágoas demasiadamente profundas, êxtases infinitamente altos para o nosso eu finito, e portanto, impossíveis de serem registados. Quando a emoção atingia estes píncaros, a mente embotava-se; e a memória fazia-se branca, até que as circunstâncias voltassem a ser vulgares outra vez.
Semelhante exaltação do pensamento, enquanto deixava o espírito vaguear, permitindo-lhe pairar por estranhos ares, fazia-o perder o antigo domínio sobre o corpo. O corpo era inferior em demasia para sentir o infinito das nossas tristezas e das nossas alegrias. Portanto, abandonávamo-lo, como a refugo; deixávamo-lo por baixo de nós, a marchar, mero simulacro respirante, no seu nível desamparado, sujeito a influências de que, em tempos normais, o nosso instinto se afastaria. Os homens eram jovens e robustos; a carne e o sangue, quentes, clamavam inconscientemente pelos seus direitos, atormentando-lhes as entranhas com bizarras aspirações. As privações e os perigos empanavam o calor viril, sob um clima tão torturante como se possa conceber. Não tínhamos recinto fechado onde ficar a sós, nem tecidos espessos para ocultar a nossa natureza. O homem vivia candidamente, em todos os sentidos, com o homem.
O árabe era, por índole, continente; e o uso do casamento universal quase que abolira todas as práticas irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas dos raros acampamentos, que encontramos nos nossos meses de vida errante, nada seriam para o nosso número, ainda que a sua oferta repugnante fosse saboreável a qualquer homem de organismo sadio. Tomada de horror perante tão sórdido comércio, a nossa juventude começou a saciar mutuamente as suas poucas necessidades nos seus próprios corpos limpos, conveniência fria, que, por via de comparação, se afigurava assexual e até pura. Mais tarde, alguns passaram a justificar este processo estéril, jurando que os amigos, palpitando juntos sobre areias movediças, com órgãos íntimos em supremo arroubo, encontravam, ali, ocultos na escuridão, o coeficiente sensual de paixão mental capaz de soldar as nossas almas e os nossos espíritos num único esforço flamejante. Outros, ansiosos por punir apetites que não podiam evitar de todo, manifestavam orgulho selvagem na degradação do corpo, oferecendo-se a si próprios para todas as práticas que prometessem sofrimentos físicos ou imundície». In T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT