«(…) Pois
eu, meu caro Villeclaire, no seu lugar, não esperava nem mais um dia após a
semana obrigatória de luto para visitar seja quem for que viva para lá dos portões
daquela casa. Ao que sei, o velho Duvernois deve-lhe dinheiro e a mais não sei
quantos. Sempre teve fama de usar as suas artimanhas de tabelião para não pagar
o que devia. Como você, esta noite, muitos outros terão certamente a mesma
ideia de ir apresentar condolências à viúva. Apresse-se, para que seja, se não
o primeiro, pelo menos um dos primeiros... Louis não respondeu mas guardou,
muito bem guardada, a informação utilíssima que o amigo acabava de lhe dar, e
prometeu que, daí a oito dias, sem adiamento algum, iria à Rue des Archives.
Caramba, dois bilhões sempre eram dois bilhões!
Louis acordou
tarde, como acontecia quase sempre quando estava em Paris. Passava as noites
nos teatros, nos bordéis, nos bailes da alta sociedade e, de qualquer maneira,
tanto lhe fazia. Na cidade não havia muito mais que um homem elegante pudesse
fazer. Por isso, era já perto do meio-dia quando Maurice, o seu criado pessoal,
entrou no quarto com a bandeja de prata em que, todos os dias, lhe servia o café
da manhã. Pousou-a sobre uma mesa, abriu os pesados cortinados de veludo azul
que impediam que a luz despertasse cedo demais o jovem marquês e ficou à espera
que o amo acabasse de se espreguiçar. Bom dia, senhor marquês! E é este um bom
dia, Maurice?, quis saber Louis. Talvez não, meu senhor! Começou a nevar... Louis
bocejou. Voltou a espreguiçar-se. Recostou-se nas almofadas e o criado
aproximou a bandeja com a primeira refeição do dia.
Há correio? Sim,
senhor marquês, a maior parte serão convites e chegaram duas cartas por mão-própria,
uma do seu procurador e outra de... Maurice interrompeu-se, sem saber como
terminar a frase. De quem, meu velho? De madame Bousquet? O criado confirmou
com um aceno de cabeça. Ah, não! A chata madame Bousquet! Tão chata quanto bonita.
Estava sendo tão divertido e, imagina, teve a infeliz ideia de se apaixonar por
mim. As mulheres estragam sempre tudo quando se apaixonam, Maurice... E como o criado
não respondia, o marquês de Villeclaire insistiu: não diz nada? Maurice sorriu.
Que quer o senhor marquês que lhe diga?! Louis riu e começou a tomar o café da
manhã enquanto abria o correio e ia dizendo alto: um baile na casa dos duques
de Saint-Denis..., almoço na casa da tia Clemence na próxima sexta-feira..., ceia
na casa dos príncipes Walensky... Ah! E madame Bousquet quer que vá visitá-la
hoje, à hora do chá. Hoje? Que dia é hoje, Maurice?
Terça-feira, 25 de
Novembro, meu senhor.
Louis lembrou-se,
então, que a semana de luto por monsieur Duvernois acabara na véspera e que
devia, nesse dia, sem falta, visitar a família e cobrar a dívida. Papel e pena,
Maurice. Tenho de agradecer o convite a madame Bousquet e avisá-la de que não
poderei ir. Abriu, depois, a carta do procurador e ficou sabendo que seria
conveniente a sua presença no seu castelo do Vale do Loire para decidir com o
feitor alguns assuntos relacionados com as sementeiras de Inverno naquela sua
grande propriedade. Normalmente detestava tratar desses assuntos. Que
plantassem batatas ou abóboras, para ele tanto fazia, mas o pai e já antes do
pai o avô, cumpriam escrupulosamente esta traição de ouvirem o feitor explicar
o que iriam plantar ou colher e de quanto tinham sido as rendas pagas pelos
rendeiros no final das sementeiras, e ele cumpria o ritual umas vezes com mais
enfado do que outras. Olhou lá para fora, através da janela. O céu estava escuro
e a neve caía acumulando-se na balaustrada da varanda. Muito bem, rumaria a
oeste, onde pelo menos não nevava e onde podia passar uns dias agradáveis caçando.
Podia convidar os rapazes, iriam todos... Talvez levasse Cléa... O senhor marquês
almoça em casa?, Maurice interrompeu-lhe os pensamentos. Que horas são? Passa já
do meio-dia, meu senhor. Não, não almoço. Prepara a minha roupa. Vou ter de
sair, avisa o cocheiro.
Maurice saiu para mandar preparar a carruagem e voltou ao quarto
seguido por uma criada que carregava uma enorme bacia de prata que fumegava. Bom
dia, senhor marquês!, disse a moça pedindo permissão. Bom dia, Marie!,
respondeu Villeclaire. Quando a criada voltou a fechar a porta do quarto Louis
saltou da cama e foi sentar-se na cadeira de toilette, pronto para ser barbeado por Maurice. E enquanto o
criado o arrumava e o ajudava a se vestir, deliciou-se pensando no quão mais
rico estaria quando esse mesmo dia acabasse. Dois bilhões de francos a mais no
seu património! Mas, primeiro, teria de procurar a escritura assinada por
Duvernois. Tinha a vaga ideia de tê-la guardado no cofre da biblioteca,
juntamente com as caixas de jóias que tinham pertencido à sua mãe e os títulos das
suas propriedades do Vale do Loire e da Borgonha». In Matilda Wright, Aposta Indecente,
2011, Editor Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2011, ISBN
978-972-204-776-0.
Cortesia de
Ld’Hoje/JDACT