domingo, 28 de junho de 2020

Memorial do Convento. José Saramago. «Outra contrariedade esperada é o auto-de-fé, não para a Igreja, que dele aproveita em reforço piedoso e outras utilidades, nem para el-rei que, tendo saído no auto senhores…»

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«(…) Que é isso, perguntou Blimunda, É o onde se suspendem as estrelas, E como se há-de ele trazer para cá, perguntou Baltasar, Pelas artes da alquimia, em que não sou hábil, mas sobre isto não dirão nunca uma palavra, suceda o que suceder, Então como faremos, Partirei leve para a Holanda, que é terra de muitos sábios, e lá aprenderei a arte de fazer descer o éter do espaço, de modo a introduzi-lo nas esferas, porque sem ele nunca a máquina voará, Que virtude é essa do éter, perguntou Blimunda, É ser parte da virtude geral que atrai os seres e os corpos, e até as coisas inanimadas, se os libertam do peso da terra, para o sol, Diga isso por palavras que eu perceba, padre, Para que a máquina se levante ao ar, é preciso que o sol atraia o âmbar que há-de estar preso nos arames do tecto, o qual, por sua vez, atrairá o éter que teremos introduzido dentro das esferas, o qual, por sua vez, atrairá os ímanes que estarão por baixo, os quais, por sua vez, atrairão as lamelas de ferro de que se compõe o cavername da barca, e então subiremos ao ar, com o vento, ou com o sopro dos foles, se o vento faltar, mas torno a dizer, faltando o éter, falta-nos tudo. E Blimunda disse, Se o sol atrai o âmbar, e o âmbar atrai o éter, e o éter atrai o íman, e o íman atrai o ferro, a máquina irá sendo puxada para o sol, sem parar. Fez uma pausa e perguntou como se falasse consigo própria, Que será o sol por dentro. Disse o padre, Não iremos ter ao sol, para o evitar lá estarão as velas de cima, que podemos abrir e fechar à vontade, de sorte que pararemos na altura que quisermos. Fez uma pausa também, e rematou, Quanto a saber como será o sol por dentro, levante-se da terra a máquina e o resto virá por acréscimo, querendo nós e não o contrariando insuportavelmente Deus.
É contudo um tempo de contrariedades. Agora sairão as freiras de Santa Mónica em extrema indignação, insubordinando-se contra as ordens de el-rei de que só pudessem falar nos conventos a seus pais, filhos, irmãos e parentes até segundo grau, com o que pretende sua majestade pôr cobro ao escândalo de que são causa os freiráticos, nobres e não nobres, que frequentam as esposas do Senhor e as deixam grávidas no tempo de uma ave-maria, que o faça João V, só lhe fica bem, mas não um joão-qualquer ou um josé-ninguém. Acudiu o provincial da Graça, querendo reduzi-las ao sossego e ao acatamento da real vontade, sob pena de excomunhão se a quebrassem, mas elas num rompante se amotinaram, trezentas mulheres catolicamente enfurecidas por assim as cortarem do mundo, primeira vez o fizeram, segunda vez tornam, agora se verá como forçam portas frágeis mãos femininas, e já saem as freiras, trazem consigo violentamente a madre prioresa, vêm com sua cruz alçada, em procissão pela rua fora, até que ao encontro lhes sai a comunidade dos frades da Graça e lhes rogam que, pelas Cinco Chagas, detenham o motim, e aí temos armado um santo colóquio entre frades e freiras, disputando cada qual suas razões, e foi ele caso que correu o corregedor do crime a el-rei, se havia ou não de suspender-se a ordem, e entre ir, chegar e debater o sucesso se passou a manhã, que, para começar-lhes o dia cedo, de madrugada se tinham levantado as protestativas, e enquanto o corregedor não volta, corregedor vai, corregedor vem, ficaram por ali as freiras, sentadinhas no chão natural as mais vetustas, alertas e vivíssimas as da última safra, a apanhar o bom solzinho da estação que faz subir os corações, olhando quem ia de passagem e por curiosidade parava, que pratos destes não os temos todos os dias, e conversando com quem bem apetecia, em modo de ali se terem fortalecido laços com proibidos visitantes que sabendo acorreram, e em acordos, requebros, horas combinadas, palavras de passe, sinais de dedos ou lencinho foi correndo o tempo até ao meio-dia, e porque enfim estava o corpo querendo alimento, ali mesmo comeram dos doces que traziam nos alforges, quem vai à guerra empadas leva, e ao cabo desta manifestação chegou contra-ordem do paço, que tudo voltava à moralidade primeira, posto o que recolheram vitoriosas as freiras a Santa Mónica entoando jubilosos cantos, ainda por cima consoladas com a absolvição do provincial que a mandou por portador, não em pessoa, porque bem podia apanhá-lo uma bala perdida, que isto de freiras amotinadas é a pior das batalhas. Metem, quantas vezes forçadamente, estas mulheres em reclusão conventual, aí ficas, por esta forma aliviando partições de heranças, favorecendo o morgadio e outros irmãos varões, e, estando assim presas, até o simples apertar de dedos à grade querem recusar-lhes, o clandestino encontro, o suave contacto, a doce carícia, mesmo trazendo ela tantas vezes consigo o inferno, abençoado seja. Porque, enfim, se o sol atrai o âmbar e o mundo a carne, alguém haverá de ganhar alguma coisa com isso, nem que seja para aproveitar os restos daqueles que nasceram para cobrar tudo.
Outra contrariedade esperada é o auto-de-fé, não para a Igreja, que dele aproveita em reforço piedoso e outras utilidades, nem para el-rei que, tendo saído no auto senhores. de engenho brasileiros, aproveita da fazenda deles, mas para quem leva seus açoites, ou vai degredado, ou é queimado na fogueira, vá lá que desta vez saiu relaxada em carne só uma mulher, não será muito o trabalho de lhe pintar o retrato na igreja de S. Domingos, ao lado de outros chamuscados, assados, dispersos e varridos, que parece impossível como não serve de escarmento a uns o suplício de tantos, porventura gostarão os homens de sofrer ou estimam mais a convicção do espírito do que a preservação do corpo, Deus não sabia no que se metia quando criou Adão e Eva. Que se há-de dizer, por exemplo, desta freira professa, que era afinal judia, e foi condenada a cárcere e hábito perpétuo, e também esta preta de Angola, caso novo, que veio do Rio de Janeiro com culpas de judaísmo, e este mercador do Algarve que afirmava que cada um se salva na lei que segue, porque todas são iguais, e tanto vale Cristo como Mafoma, o Evangelho como a Cabala, o doce como o amargo, o pecado como a virtude, e este mulato da Caparica que se chama Manuel Mateus, mas não é parente de Sete-Sóis, e tem por alcunha Saramago, sabe-se lá que descendência a sua será, e que saiu penitenciado por culpas de insigne feiticeiro, com mais três moças que diziam pela mesma cartilha, que se dirá de todos estes e de mais cento e trinta que no auto saíram, muitos irão fazer companhia à mãe de Blimunda, quem sabe se ainda está viva». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT