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e wikipedia
Roma.
1605
«Sangue!
Essa palavra tão significativa amolgou o tampo da mesa; o punho bateu repetidas
vezes na madeira, de forma arrasadora e sem parar. Queremos sangue. A sala secreta, menor que um
quarto de dormir, devolveu um débil eco da palavra final. Nas sombras ao longo
da parede de pedra fria, um pequeno besouro negro correu sem fazer barulho para
a quina. Mas, Sua Santidade, gaguejou o cardeal Venitelli, a manga trémula ao
erguer a mão tão de leve, retorcendo duas vezes o solidéu roxo, esse livro é em
inglês. Quem dará
atenção a ele? O livro é circunstancial!, interrompeu o papa, aos berros. Se
queremos reconquistar aquela ilhazinha imunda, chegou a hora. Jamais teríamos
tentado fazer isso com Elizabeth, mas entregaram o trono a James. Ele é um
homem orgulhoso, e agora pôs os poucos talentos literários que possui para
trabalhar nessa obra. É ao mesmo tempo muito seguro de si e desequilibrado
mental. Chegou a hora. Mas..., quando o senhor diz sangue... Venitelli não fazia ideia de como terminar a frase. O
manto rubro do papa Clemente subia e baixava a cada trabalhosa respirada. Um colarinho
branco e translúcido aflorou da roupa de baixo no pescoço. O fogo chiou na
lareira do outro lado do quarto. O sangue deterá o livro. Essa parada revelará
o plano de James para a Inglaterra. O plano revelado constrói a ponte de Roma a
Londres. Essa ponte trará a Inglaterra de volta à Igreja. O senhor deve ver
pelo menos o humor de Deus, senão o plano, nisso tudo. O quartinho de pedra no
qual os dois se sentavam ficava bastante oculto. Ninguém o conhecia, além dos
visitantes mais íntimos do papa. Pelo lado de fora, não se via a porta,
escondida pelas pedras no longo corredor. Do lado de dentro, mal havia móveis,
a não ser uma mesa e duas cadeiras. Duas grandes velas presas ao tecto iluminavam
as paredes, cobertas por grossas tapeçarias de seda, que faziam o possível para
absorver todo o som: cenas de caça de espantosa violência. As personagens
pareciam movimentar-se aos arrancos à luz vacilante. No piso, estendia-se um
pesado tapete de complicados desenhos roubado durante as Cruzadas, dizia-se, do
próprio Saladino. O cardeal Venitelli sempre imaginava sentir o cheiro do
acampamento dele tão logo pisava ali. Muitas vezes esforçara-se para explicar a
sensação a si mesmo. O motivo ficava-lhe sempre pouco além do alcance da mente.
O próprio quarto parecia acostumado a palavras ásperas. Sim, conseguiu
responder o cardeal, mas o sentido exacto... Não precisa se preocupar com
sentidos exactos. O papa Clemente gostava de julgar-se impaciente: isso
despertava rápida acção nos subordinados. Já pusemos em andamento um certo
plano, que envolve, em parte, o anfitrião dos tradutores na Christ Church, em
Cambridge: um pastor chamado Marbury, protestante. Infelizmente, um homem
inteligente num pântano de idiotas. Mas vamos ao que importa: um académico do
grupo de Cambridge vai ser esta noite..., qual a melhor palavra? Eliminado. Quando isso
acontecer, nós introduziremos no meio deles nosso anjo vingador.
Essa
frase era um código bem conhecido para o cardeal, mas, querendo assegurar-se, ele
começou a perguntar: com o que o senhor quer dizer... Essas tapeçarias são
elegantes, não são? Clemente desviou os olhos. O outro compreendeu. Sua
Santidade não devia dizer o nome do principal assassino, o anjo vingador. Assim, poderia
afirmar com toda a honestidade, em futuras conversas, que não o identificara, e
que certamente jamais falara com ele. Essa tarefa cabia ao cardeal; tarefa de
que não gostava, ficou, portanto, com o rosto pálido e com a voz trêmula. Eu
devo pedir..., pedir ao homem em questão que vá à Inglaterra e mate... Decerto
que não. O papa girou a cabeça em torno dos ombros. Basta dizer-lhe que vai
haver uma missão para os tradutores da Bíblia do rei James. Enfatize Bíblia. Depois diga estas palavras exactas: a volta
da roda na moagem do trigo. Venitelli sentiu um punho apertar-lhe a
barriga. Quantas vezes já havia transmitido essas frases em código ao tal
homem, o que depois resultava em escabrosos assassinatos. A volta da roda na
moagem do trigo, repetiu, balançando a cabeça. Sua Santidade sorriu, mas não o
olhou. Vamos usar o homem em questão pelo talento especial dele; capacidade que
só ele possui. Ele possui um telum secretus, se Nos permitem um
ar dramático. Mas a verdadeira tarefa de nosso irmão..., a missão... O motivo
de Nós atribuirmos essa tarefa ao senhor, meu irmão cardeal Venitelli, disse o papa,
num tom tranquilizador, como a um menino de sete anos, é que o senhor raras
vezes compreende a importância de qualquer situação. Mas actua com discrição. Deve entender que
nada Nos impedirá de reivindicar a Inglaterra, trazê-la de volta à Madre
Igreja. É o plano de Deus. Temos em mente uma série de factos, na verdade,
embora possa levar vários anos para que se desenrolem, que Nos levarão a esse
objectivo. Sim.
A voz
de Venitelli demonstrava absoluta confusão. O Sumo Pontífice curvou-se para a
frente, o rosto junto ao do subalterno, e mal falou acima de um sussurro,
embora o som da sua voz parecesse o de um trovão. Este será o meu legado,
entende? A História me registará como o homem que devolveu a Inglaterra à
Igreja Verdadeira. E isso começa com
a destruição desse livro... Essa loucura a que James aspira. O cardeal sentiu
por um momento as narinas atacadas por um cheiro de camelos; ouviu fracas
preces islâmicas. Embora não falasse árabe, acreditava que as rezas clamavam
pelo sangue dos infiéis. Baixou o olhar para o tapete de Saladino, furioso.
Seria possível uma maldição dos vencidos guerreiros muçulmanos permanecer ali,
contaminando decisões tomadas naquela saleta? Talvez isso explicasse o cheiro
antigo que sentia e a desconcertante veemência do papa. Está tentando pensar? Clemente
fuzilou-o com os olhos. Vai pensar duas vezes em Nossas palavras? Venitelli
apressou-se a empertigar-se. Mil perdões, Sua Santidade. Estendeu a mão o anel
papal. O plano de Deus é glorioso, e seu nome viverá para sempre». In
Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.
Cortesia
de Prumo/JDACT