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O amor
e a morte são vizinhos
«Os
seus rostos são únicos e iguais. O ser humano não precisa de parar de respirar para
morrer e não lhe basta respirar para viver. Nunca estamos seguros, nem quanto à
morte nem quanto ao amor. Duas pessoas conhecem-se. Apaixonam-se. Amam-se. Amam-se
e desejam-se, e um dia o amor chega ao fim, de repente, tal e qual como no dia
em que parecia ter surgido para sempre. O amor foi sufocado pelo ritmo monótono
das circunstâncias, exteriores ou interiores. Ou o amor permanece até o seu
tempo terminar ou, então. ainda que inevitável, era já um amor impossível à
partida. Será este último amor aquele que cria mais problemas? É, sim, pensa Malin
Fors, quando, depois de sair do banho, se encontra de roupão diante da bancada
da cozinha a barrar com manteiga uma torrada de pão integral com uma das mãos, e
a levar aos lábios uma caneca com café com e outra. O relógio do Ikea pendurado
na parede branca marca 6h15. Lá fora, sob a iluminação da rua, a atmosfera
perece ter-se transformado em gelo. O frio intenso envolve os muros cinzentos
ao redor da Igreja de Santo Lars e as extremidades brancas das ramagens parecem
gritar há muito tempo: piedade, nem mais uma noite com a temperatura abaixo dos
vinte graus negativos; é melhor quebrar-nos de ume vez, deixar-nos cair mortas
no chão. Quem é que pode gostar deste frio? Um dia como este, pensa Malin, não
foi feito para seres vivos.
Linkoping
está paralisada. As ruas da cidade permanecem vazias e os vidros das janelas ficam
embaciados pelo vapor interior congelado, impedindo a vista para o exterior. Na
noite passada as pessoas nem sequer conseguiram ir ao Cloetta Center para ver o
jogo de hóquei no gelo, disputado pela equipa da cidade, o LHC. Compareceram
apenas duas mil pessoas, quando, normalmente, o recinto costuma ficar repleto
de gente. Gostaria de saber como correu aquilo ao Martin, pensa Malin. Martin e
o filho do seu colega Zeke que o treinara e orientara para o lugar de avançado
e goleador na equipa nacional da Suécia. E para uma carreira promissora como
profissional. Ela própria não nutria grande interesse pela equipa de hóquei de
Linkoping, mas como vivia na cidade era impossível não ter conhecimento dos
resultados alcançados pelo LHC no hóquei. As ruas continuam quase desertas.
A
agência de viagens, na esquina das ruas St. Larsgatan e Hamngatan, diverte-se a
colocar na montra cartazes de locais, cada um mais exótico do que o outro. É o
sol. São as praias. Os céus zuis que parecem irreais, pertencentes a um outro
planeta habitável. Uma mãe solitária passa com um caninho de gémeos diante de
um banco, as crianças a dormir em sacolas pretas, invisíveis, sem vontade
própria, fortes, mas, ao mesmo tempo, tão infinitamente indefesas. A mãe escorrega
no gelo escondido sob uma camada de lama, balança, balança, mas não cai, segue
em frente, como se nenhuma outra coisa fosse possível. Diabos me levem, os
Invernos aqui são de morrer!
Dentro
de si, Malin ouve as palavras do pai, de como ele, alguns anos antes,
justificou a compra de uma vivenda de três divisões numa das áreas para
reformados, a Playa de la Arena, um pouco a norte da Playa de las Américas, nas
ilhas Canárias. Como é que vocês estão?, interroga-se Malin em pensamento. O
café quente aquece-lhe o estômago. Vocês, certamente, ainda estão a dormir e
quando acordarem vão ter sol e calor. Por aqui, o frio é intenso, pensa Malin».
In
Mons Kallentoft, Sangue Vermelho em Campo de Neve, 2007, Publicações dom
Quixote, 2010, ISBN 978-972-204-168-3.
Cortesia
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