quinta-feira, 9 de junho de 2016

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na porta, Entre, palavra que foi rogo, não ordem, e quando a criada abriu, mal a olhando, disse, A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado»


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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) E agora, perguntou, E agora, Ricardo, ou lá quem és, diriam outros. Num relance, percebera que o verdadeiro termo da sua viagem era este preciso instante que estava vivendo, que o tempo decorrido desde que pusera o pé no cais de Alcântara se gastara, por assim dizer, em manobras de atracação e fundeamento, o tentear da maré, o lançar dos cabos, que isso foram a procura do hotel, a leitura dos primeiros jornais, e dos outros, a ida ao cemitério, o almoço na Baixa, a descida da Rua dos Douradores, e aquela repentina saudade do quarto, o impulso de afecto indiscriminado, geral e universal, as boas vindas de Salvador e Pimenta, a colcha irrepreensível, enfim, a janela aberta de par em par, empurrou-a o vento e assim está, ondulam como asas os cortinados leves, E agora. A chuva recomeçou a cair, faz sobre os telhados um rumor como de areia peneirada, entorpecente, hipnótico, porventura no seu grande dilúvio terá Deus misericordioso desta maneira adormecido os homens para que lhes fosse suave a morte, a água entrando maciamente pelas narinas e pela boca, inundando sem sufocação os pulmões, regatinhos que vão enchendo os alvéolos, um após outro, todo o oco do corpo, quarenta dias e quarenta noites de sono e de chuva, os corpos descendo para o fundo, devagar, repletos de água, finalmente mais pesados do que ela, foi assim que estas coisas se passaram, também Ofélia se deixa ir na corrente, cantando, mas essa terá de morrer antes que se acabe o quarto acto da tragédia, tem cada um o seu modo pessoal de dormir e morrer, julgamos nós, mas é o dilúvio que continua, chove sobre nós o tempo, o tempo nos afoga. No chão encerado juntaram-se e alastraram as gotas que entravam pela janela aberta, as que salpicavam do peitoril, há hóspedes descuidados para quem o trabalho humilde é desprezível, julgam talvez eles que as abelhas, além de fabricarem a cera, a virão espalhar nas tábuas e depois puxar-lhes o brilho, ora isto não é trabalho de insectos, se as criadas não existissem, obreiras também elas, estes resplandecentes soalhos estariam baços, pegajosos, não tardaria aí o gerente armado de repreensão e castigo, porque, gerente sendo, é esta a sua obra, e neste hotel fomos nós colocados para honrar e glorificar o senhor dele, ou seu delegado, Salvador, como sabemos e já deu mostras. Ricardo Reis correu a fechar a janela, com os jornais empapou e espremeu a água do chão, a maior, e, faltando-lhe outros meios para emendar por inteiro o pequeno atentado, tocou a campainha. Era a primeira vez, pensou, como quem a si mesmo pede desculpa.
Ouviu passos no corredor, ressoaram discretamente uns nós de dedos na porta, Entre, palavra que foi rogo, não ordem, e quando a criada abriu, mal a olhando, disse, A janela estava aberta, não dei por que a chuva entrasse, está o chão todo molhado, e calou-se repentinamente ao notar que formara, de enfiada, três versos de sete sílabas, redondilha maior, ele, Ricardo Reis, autor de odes ditas sáficas ou alcaicas, afinal saiu-nos poeta popular, por pouco não rematou a quadra, quebrando-lhe o pé por necessidade da métrica, e a gramática, assim, Agradecia limpasse, porém o entendeu sem mais poesia a criada, que saiu e voltou com esfregão e balde, e posta de joelhos, selpeando o corpo ao movimento dos braços, restituiu quanto possível a secura que às madeiras enceradas convém, amanhã lhes deitará uma pouca de cera, Deseja mais alguma coisa, senhor doutor, Não, muito obrigado, e ambos se olharam de frente, a chuva batia fortíssima nas vidraças, acelerara-se o ritmo, agora rufava como um tambor, em sobressalto os adormecidos acordavam, Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, e acrescentou, Às ordens do senhor doutor, poderia ter dito doutra maneira, por exemplo, e bem mais alto, Eis-me aqui, a este extremo autorizada pela recomendação do gerente, Olha lá, ó Lídia, dá tu atenção ao hóspede do duzentos e um, ao doutor Reis, e ela lha estava dando, mas ele não respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussurro, quem sabe se para não o esquecer quando precisasse de voltar a chamá-la, há pessoas assim, repetem as palavras que ouvem, as pessoas, em verdade, são papagaios umas das outras, nem há outro modo de aprendizagem, acaso esta reflexão veio fora de propósito porque não a fez Lídia, que é o outro interlocutor, deixemo-la sair então, se já tem nome, levar dali o balde e o esfregão, vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, é um jeito de lábios que não engana, quando quem inventou a ironia inventou a ironia, teve também de inventar o sorriso que lhe declarasse a intenção, alcançamento muito mais trabalhoso, Lídia, diz, e sorri». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9.

Cortesia de Caminho/JDACT