quarta-feira, 8 de junho de 2016

Dominus. Tom Fox. «O fumo prateado subia em círculos com as suas gavinhas a dobrarem-se sobre si próprias em plumas que se dissipavam lentamente no ar estagnado. As que desciam chegavam às unhas»

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«(…) Tu és um homem de fé, disse o estranho suavemente ao papa, e a tua fé curou-te. Estendeu o seu outro braço, pegou nas mãos dos dois assistentes que seguravam os ombros do pontífice e afastou-as suavemente. Eles apenas resistiram um momento, deixando depois silenciosamente o homem retirar-lhes as mãos do seu fardo. O papa ficou de pé, sem apoio e dobrado, hesitante. Levanta-te, Pedro, disse o estranho. O que estava torto ficou direito. O papa olhava fixamente para ele, com os olhos arregalados. Respirou fundo. Engoliu. E depois o Santo Padre manteve-se de pé por si só pela primeira vez na sua vida. Nenhum dos dois homens pareceu notar os gritos de espanto dos cardeais e clérigos que os rodeavam, ou das massas boquiabertas que estavam por trás deles, quando a multidão testemunhou a cura do seu líder espiritual. Os olhos do papa ficaram vidrados com uma película de admiração e gratidão. Com a sua mão direita, o estranho levantou o cálice de ouro e voltou a colocá-lo na mão do papa, certificando-se de que estava bem seguro. Agora, Vossa Santidade acabará o que veio aqui fazer. Sem dizer mais uma palavra, contornou o altar para a esquerda do pontífice e sentou-se num dos lugares clericais por trás dele. Depois, fechando os olhos e cruzando as mãos calmamente em cima das suas calças de ganga, o estranho começou a rezar.

Freguesia de Fidene. Roma, manhã
Seis quilómetros a norte, numa curva fechada e isolada do rio Tibre, um corpo flutuava na água fria com a cara voltada para baixo. O seu cabelo dourado agitava-se de forma quase bela na suave corrente. A esta hora tão matutina, ninguém lamentava a sua ausência. Ninguém andava à sua procura. Ninguém sequer sabia que ele tinha desaparecido. Em menos de 48 horas, toda a nação havia de conhecer a cara do homem. Daria origem a controvérsia. Incitaria raiva e desconfiança e suscitaria gritos de fraude. Viria a abalar a fé numa escala impensável. Mas neste momento o cadáver andava solitariamente à deriva no rio com a cara escondida nas águas turvas. O assassinato que tinha tirado a vida ao homem era uma coisa do passado, e as correntes que tinha nos tornozelos eram insuficientes para submergir o cadáver como o assassino tinha esperado. E, assim, o cadáver flutuava persistentemente em direção ao centro da cidade. Como se soubesse que mais estava para vir.

Sede do jornal La Repubblica. Roma
O fumo prateado subia em círculos com as suas gavinhas a dobrarem-se sobre si próprias em plumas que se dissipavam lentamente no ar estagnado. As que desciam chegavam às unhas, à pele e ao nó do dedo, acariciando a carne e deixando a sua marca inconfundível: amarela e leve, um indício de alcatrão e respiração solidificados. O problema do fumo eram os malditos dedos amarelos. Com os anos, Alexander Trecchio tinha experimentado mil posturas diferentes de segurar os seus MS Filtro favoritos nas mãos para evitar o recuo do fumo e a acumulação amarela e pegajosa que invariavelmente se formava em volta dos nós dos dedos, mas nada funcionou. O médico já lhe tinha dito ainda mais vezes do que isso que a pele amarelecida era a menor das suas preocupações. Mas Trecchio era um homem que baseava as suas acções, e especialmente os seus hábitos, em factos concretos. A possibilidade de enfisema ou uma longevidade mais curta era assustadora, mas descartavelmente hipotética. Pelo contrário, o facto de os dedos estarem amarelos era incontornável. Deu uma longa passa pelo papel fino e pelo tabaco bem apertado, com os olhos fechados. Observou o carvão vermelho queimando um rastilho pelos fragmentos desfeitos e secos de folha curada e o fumo seguindo o seu serpenteante caminho pelo seu canal, precipitando-se ao seu encontro. Quando o sabor familiar lhe passou pelas papilas da língua e para dentro dos pulmões, Alexander percebeu que na verdade não queria mesmo saber das inconveniências, nem sequer dos dedos. O seu vício era uma coisa pequena que lhe dava conforto e tranquilidade quando pouco mais o fazia. E ele aceitava-o assim». In Tom Fox, Dominus, 2015, tradução de Ângelo Santana, Topseller, 20/20 Editora, ISBN 978-989-883-913-8.

Cortesia de Topseller/20/20 Editora/JDACT