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O
Iniciado
«Com
o amanhecer do primeiro dia da Primavera, melhorou o tempo húmido que tinha
assolado a província de Wishet desde meados do Inverno. Homens que se diziam de
sábios e asseguravam que tinham anunciado a mudança o consideraram um bom
augúrio e, na intimidade de seus lares, os habitantes mais piedosos da
província deram graças a Aeoris, o maior dos Sete Deuses. Seguindo uma tradição
de séculos, todas as cidades e os povos do país celebrariam nesse dia a chegada
da Primavera. O pequeno distrito do Wishet, situado a umas sete milhas terra
adentro da capital da província, Porto do Verão se preparou com muita antecipação
para as longas cerimónias. Como sempre, uma nutrida procissão, presidida pelo
Margrave provincial, com um séquito de anciões e dignatários locais, desfilaria
pela cidade até o rio, onde se realizaria o revestimento ritual e a adoração
das estátuas em madeira dos Sete Deuses. Os ritos do Primeiro Dia do Trimestre
podiam ser presenciados por toda a população, dos mais elevados personagens até
os mais humildes, até por Estenya, uma viúva pobre que vivia com seu filho
ilegítimo no bairro mais miserável da cidade e dependia para seu sustento da
caridade dos membros mais afortunados de seu clã. Em um dia como aquele,
Estenya percebia mais claramente que de costume sua situação deplorável,
enquanto olhava sua imagem no espelho manchado pelas moscas. Seu vestido, o
melhor que tinha, era velho; já estava usado quando chegou a seu poder.
Repetidas lavagens tinham encolhido tanto a malha, que a barra não lhe chegava
abaixo das panturrilhas. E o xaile bordado que usava, numa tentativa de ocultar
a monotonia do vestido, era muito fino; serviria de pouco contra o vento de leste.
Mas naquele dia, o aspecto era mais importante que a comodidade; teria que
suportar o frio se não quisesse envergonhar seus parentes..., embora, reflectiu
amargamente, o mais provável era que se limitassem a saudá-la brevemente
durante as festas. Ela representava uma mancha em sua história imaculada, a
linda e promissora moça que, inexplicavelmente, tinha cometido uma falta e
pagara por ela após... Estenya procurou dar a seu rosto uma expressão que
esperava que dissimulasse as rugas, que, a seus trinta anos, começavam a lhe
danificar a tez, e amaldiçoou em silêncio os acontecimentos que, há doze anos,
tinham-na lançado nesse caminho. Naquela ocasião, esgotada pelo parto e em um
agudo estado emocional, quisera conservar seu filho contra as pressões de sua
família para que o fizesse passar por filho de uma criada. Saiu com ele..., a
custa de seu próprio futuro. O menino não tinha um pai que lhe desse o
sobrenome de um clã, como era tradicional nos filhos varões, e a família dela
se negou a quebrar as normas para outorgar ao pequeno o privilégio do sobrenome
familiar. Assim, desde seu nascimento, o menino não fazia parte de nenhum clã e
Estenya se viu rechaçada pela sociedade. A princípio, submeteu-se de bom grado
às limitações que lhe eram impostas, mas com o tempo, ao murchar o esplendor de
sua juventude, enquanto o menino, ao crescer, parecia que se afastava mais e
mais dela, começou a lamentar amargamente a decisão que tinha tomado.
Mas
embora tivesse pudesse livrar-se da carga do menino, duvidava muito que algum
homem pudesse pensar em casar-se com ela agora. Havia muitas mulheres mais
jovens e mais belas; mulheres sem um passado vergonhoso que atrapalhasse suas
oportunidades. Se não tivesse sido tão estúpida, dizia-se. Um débil ruído a
tirou, de repente, de seus pensamentos, e se virou, sobressaltada. O menino
tinha aberto a porta e entrado no dormitório tão silenciosamente que ela não se
dera conta de sua presença. Possivelmente estivesse ali dez minutos ou mais,
observando-a daquela maneira inescrutável e inquietante, e seu olhar parecia
dizer, como sempre, que sabia exactamente o que ela estava pensando. Quantas
vezes tenho que dizer que não entre desta maneira em meu quarto? Quer me matar
de susto? Sinto muito. O brilho dos estranhos olhos verdes do moço se extinguiu
momentaneamente quando este baixou o olhar. Estenya lhe observou perguntando-se
uma vez mais como tinha podido engendrar aquele menino. Todos os clãs do Wishet
tinham certas características comuns de constituição e de cor, das que eram
exemplo típico a robustez e a pele cítrica herdadas por Estenya de seu pai e de
sua mãe. Mas o menino..., era já mais alto que ela, esbelto e vigoroso. Seus
cabelos, negros como o azeviche, caíam emaranhados sobre os ombros, e os olhos
verdes, em contraste com seu rosto pálido e magro, davam-lhe um inquietante ar
felino. Talvez toda sua herança genética viesse de seu pai..., e, como sempre que
Estenya pensava nisto, a ideia foi seguida do desagradável corolário: se pelo
menos soubesse quem era seu pai! Aí radicava toda a tristeza do assunto: no facto
de que a identidade do desconhecido, cujas ardentes insinuações durante uma
longínqua festa de Primeiro de Trimestre tinha sido incapaz de resistir, fora,
e continuaria sendo, um mistério. Aquele único erro tinha sido a causa de sua
desgraça..., e nem sequer podia recordar o rosto daquele homem!
Observou
atentamente seu filho. Não devia mostrar-se irritável nem impaciente com ele,
pensou; não podia lhe jogar a culpa da situação em que se achava. Mas,
entretanto, o ressentimento continuava presente, e qualquer que tivesse coração
poderia compreendê-lo. Você não se penteou, acusou-lhe. Sabe como é importante
que tenha hoje um bom aspecto. Se fizer que tenha de me envergonhar de você... Deixou
que a ameaça flutuasse no ar sem pronunciá-la. Sim, mãe. Um brilho de rebelião
brilhou nos estranhos olhos verdes, mas se extinguiu quase antes de que ela
pudesse vê-lo. Ao voltar-se para sair da habitação, gritou-lhe: não quero vê-lo
com o Coran. Não esqueça! Intimamente, Estenya lamentava ter que lhe impor esta
restrição. Coran, o filho de sua prima, era da mesma idade que o menino, e o
único bom amigo que este tinha. Mas os pais de Coran desaprovavam sua amizade,
além do estritamente necessário, com um bastardo, fosse qual fosse o vínculo de
sangue, e ela não se atrevia a contrariá-los. O menino não respondeu, embora ela
soubesse que a tinha ouvido, e um momento mais tarde, seus passos ressonaram na
escada da pequena casa desmantelada. Estenya suspirou. Não sabia se ele levaria
sua advertência a sério; sempre tinha sido reservado, mas ultimamente sua mente
se convertera em um livro fechado para ela. Só podia esperar, e tratar de
passar aquele dia o melhor possível». In Louise Cooper, O Senhor do Tempo, O
Iniciado, 1985, Digital Source, Viciados em Livros, Ebook, 2008.
Cortesia
de DSource/Ebook/JDACT