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Ninguém melhor do que eu engodava ele o pedido requererá as coisas de teu filho
Jorge, que tanto recomendas ao senhor duque... Talvez o senhor duque..., me queira
acrescentar... Vai consentiste quase a morrer. Álvaro Castro, teu cunhado, vá contigo.
Beneficiará também das mercês que o duque vos queira fazer. Eles saíram, numa mesura,
e tu comentaste como para ti: os ratos abandonam a nau. Não valho nada! Sem conseguirem
disfarçar o brilho dos olhos, cochichavam outros pelos cantos mais recatados da
casa que ia chegar o momento de se reporem liberdades e privilégios perdidos ou
de se perderem acrescentamentos mal ganhos... Conservava o secretário um papel
na mão para tu assinares. Que é mais?, perguntaste. Aquele documento referente a
uma tença a conceder a Ana de... Dá cá. Tomaste a pena que eu te estendia, mas de
repente desataste a chorar e deixaste-a cair. Apresentei-te outra: sossega, meu
senhor! Não me consoles. Um aceno, um olhar ao príncipe que ia a passar... Gentil
dona, mãe de meu filho, perdoa-me. O bicho que eu era logo mordia..., e com muito
pranto assinaste. Tratavam-te por alteza, que assim te era devido: Alteza!, consideraste.
Não me chameis alteza. Não passo de um saco de trampa e de vermes. Não cheirais
o fedor que lanço? E tenho na boca um amargor difícil de suportar. Avizinhava-se
o tempo de desenlace. Com mezinhas oficinais trataram os médicos de te estancarem
o fluxo cada vez mais abundante, que a todo o momento era preciso ajudar-te a sentares-te
na cadeira estercorária, com grande trabalho do prior do Crato e do camareiro, que
neste particular te serviam, e náuseas dos restantes. Alagavas-te pelas pernas abaixo
até aos pés e ao soalho, de modo que depois tinham de te lavar, mudar-te a roupa
e entravam os criados a limpar o chão. Abriam-se as janelas a arejar o quarto e,
quando regressavas à cama, já num queimador de prata ardiam resinas de incenso e
aloés. Com o estancamento do fluxo o humor corrupto espalhou-se-te por todo o corpo.
Saltou contigo profunda letargia que te prostrou em teimosa sonolência. A custo
te acordavam e, acordado, pedias: por amor de Deus, não me deixeis dormir como um
animal. Bradavam-te ao ouvido: Senhor! Senhor!
Abanavam-te,
esfregavam-te as mãos, os pés. Diogo Almeida agarrou-te a barba: acorda, senhor!,
clamou num vozeirão. De imediato abriste os olhos, totalmente desperto: prior, essa
mão seria mais honesta noutro lugar. Havia aí os pés. Os físicos mostravam-se indecisos.
O doutor Lucena era de parecer que te tornassem ao fluxo: temos de arrancá-lo a
este torpor. Concordaram com ele mestres Rodrigo e Josepe e assim fizeram. Antão
Faria falava a um canto com os do teu conselho: temo o pior e é necessário prevenir.
Dei instruções para que fosse a Lisboa uma caravela a buscar adereços de nojo, veludos
e damascos, cobertas, tochas, tudo o que convém... Pranteavam em redor com
algum descomedimento. Não chorassem, rogavas tu, para te não causarem torvação
em tão grave extremo. Vinha de fora o sal da maresia e o marulho das ondas. Em que
altura se encontra a maré?, quiseste saber. Disseram-to, afirmaste: daqui a duas
horas me finarei. Conhecias segredos do sólido e do líquido, do fogo, da água e
da terra, das estrelas e dos ventos, do regime das marés e das horas da noite, das
sombras dos corpos. Certa vez me ensinaste tu as horas pelo setentrião. Com uma
vara desenhaste no pó do chão uma rosa dos ventos: não sei debuxar com tanta segurança
e perfeição como tu ias dizendo mas esforça-te por entenderes os rabiscos.
Marcaste
os quadrantes, espetaste no centro a estaca a prumo e, com paciência de mestre,
levaste-me a ler o apontar da sombra... Neste aposento em que agonizavas apenas
se permitiu a entrada de uns poucos. Ao fundo da cama, de pé, postaram-se os três
bispos: Jorge, o de Coimbra, no centro com a cruz; de um e outro lado, Ortiz, o
de Tânger, que segurava um ícone do vulto de Cristo, e Camelo, o do Algarve,
com a caldeira e o hissope. Na cabeceira, de joelhos, o conde de Penela segurava-te
na mão a candeia e junto rezavam Almeida e Cabral. Em frente, da outra banda,
acompanhavam as orações o capitão de ginetes, o tesoureiro e Eça. Um pouco afastados
ajoelhávamos o moço da guarda-roupa e eu que a tudo assisti pois dormia na tua câmara
e quase nunca daqui saía. Conservaste até ao fim o teu completo conhecimento, vista
e ouvido inteiros, sem te moveres, seguindo versículo por versículo as orações dos
bispos: Agnus Dei qui tollis peccata mundi,
miserere mei…, ainda os teus lábios articulavam. Súbito deixaram de mexer, no
desmaio final. Em querendo pôr-se o Sol, despegou-se-te a alma da carne com um suspiro
que se escoou cansado do fundo do peito até à boca». In Fernando Campos, A Esmeralda
Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
Cortesia
de Difel/JDACT